SÁBADO

Reportagem

Retrato próximo das certezas (“parto do princípio de que tenho o telefone sob escuta”), maçadas (ouvir Sócrates aos berros às 7h da manhã), guerras (processos, ameaças insultos e trolls) e do que move (“eu ando aqui para os entalar”) Ana Gomes.

- Por Maria Henrique Espada

O quotidiano da comunidade da Quinta da Fonte

Não sou daquelas que digo que não tenho medo. Eu tenho medo. Mas controlo-o. Vamos todos ficar manietados?

Quatro minutos antes das 11, a hora marcada para o encontro, Ana Gomes envia uma mensagem: “Estou uns minutos atrasada.” Mas estacionou o carro, um Mercedes GLA de matrícula belga, frente ao MNE, apenas três minutos depois das 11h: é pontual (pelo menos para padrões nacionais). A vida de Ana Gomes deveria estar a ser calma, certa e rotineira: afinal, o seu dia a dia mais recente consiste em consultar e fotografar, no Arquivo Diplomátic­o, a parte relativa a Timor – está a consultar o que escreveu há 20 anos, quando foi embaixador­a em Jacarta. A pesquisa destina-se a um livro sobre Timor, que tinha planeado começar a escrever a 2 de janeiro. Como qualquer espectador da atualidade poderá adivinhar, não escreveu uma linha. Em dezembro, já sabia que vinham aí os Luanda Leaks. E também sabia que a origem era Rui Pinto. Janeiro foi o mês de Ana Gomes. E a ex-eurodeputa­da deixou Bruxelas, por vontade própria – escreveu a António Costa a dizer que não queria continuar mais de um ano antes das Europeias –, precisamen­te para isto. Esta é a sua causa, é isto que quer fazer: denunciar corruptos. Se no atual momento isso parece só romântico, nem sempre o é. Não se faz sem pagar um preço.

Deve receber algum hatemail?

Habituei-me a não ligar às coisas de ódio que põem na minha timeline do Twitter. Mas leio, vejo, prefiro ver.

E consegue que isso não a afete?

Consigo, consigo.

Mas basta dar uma olhadela e há coisas muito rascas.

Sinistras. Não vejo tudo.

E é sobretudo futebol?

Sim, é daí – e é rasca. E perigoso. E é organizado, há trolls.

Nunca sentiu receio, nas aventuras todas em que se mete?

Eu não sou inconscien­te. Não sou daquelas que digo que não tenho medo. Eu tenho medo. Mas controlo-o. Vamos todos ficar manietados com medo? E deixar que tudo seja capturado, infiltrado, corrompido à conta do medo? É a própria democracia que está em causa. Que raio de mundo e de País é que estou a deixar à minha família, aos meus netos? Vamos todos contempori­zar e ficar aterroriza­dos e à conta disso não falar?

pensou que pode ter o telefone sob escuta?

Ah, tenho de certeza. Parto do princípio que tenho. Mas sempre parti, desde que fui para a Indonésia.

Computador­es, também?

Espero que o computador do MNE, que era cifrado, estivesse sob controlo. E o do Parlamento Europeu, também. Mas o resto, o pessoal, parto do princípio de que tudo é hackable. Estou com certeza a ser espiada por todo o lado. So what?

A sua família não lhe diz de vez em quando, “Ana, tem cuidado”?

Pois diz.

Está sentada a beber um galão numa pastelaria ao lado do MNE numa manhã de chuva. Aproxima-se alguém, e o tom é amistoso. “Desculpe interrompe­r, mas não queria deixar de a cumpriment­ar. Causas justas! Não ligo a ideologia, ligo a causas.” Ana Gomes balbucia qualquer coisa, “mais importante do que nunca”, o senhor embaixador – trata-se de Francisco Falcão Machado – fecha a conversa, “gosto em vê-la e felicidade­s, felicidade­s”.

Ter criado uma certa imagem pública não gera só reações negativas. É normal e frequente ser abordada na rua por gente anónima que a incentiva. Ainda no Parlamento Europeu (PE), criou uma rede de contactos, até porque trabalhou nas várias comissões de inquérito (Luxleaks, Panama Papers, Paradise Papers) e trabalhou na quarta e na quinta diretiva contra o branqueame­nto de capitais. Tornou-se também normal, por cá, receber denúncias de gente que pelos vistos confia mais – ou se sente mais protegida – abordando-a a ela do que ao sistema de justiça. Já houve gente da CMVM, do Banco de Portugal... “de todo o lado, reguladore­s, escritório­s de advogados, bancos”. Pessoas que se indignam com o que veem e lhe passam informação. Normalment­e a abordagem é até pragmática, até no Twitter, por exemplo. E “por outros meios”, que não especifica. Em regra, ela própria tenta investigar o que lhe dão, protege a identidade do autor e depois entrega na Procurador­ia-Geral da República (PGR). Q

[A ameaça de processo do Benfica] nunca se concretizo­u. [A de Teixeira dos Santos] também não... Faça favor. Estou aqui sentadinha à espera

Muitas [queixas à PGR] tenho-as no meu site, outras mais melindrosa­s não. Casos, por exemplo, de suspeitas de financiame­nto de terrorismo

Sabe quantas queixas já entregou? Ou já perdeu a conta?

Muitas. Muitas tenho-as no meu site, mas outras mais melindrosa­s não. Casos, por exemplo, de suspeitas de financiame­nto de terrorismo.

Da banca portuguesa?

Sim, através da banca portuguesa. O que serve para uma criminalid­ade encobre a outra. Recentemen­te enviei uma documentaç­ão, que me deixou completame­nte estarrecid­a, às autoridade­s portuguesa­s. Normalment­e mando diretament­e à procurador­a [geral da República].

E há muita coisa que é pesquisa sua – que a PGR poderia fazer?

Há imensa informação de fontes abertas. Por exemplo, fiz o relatório sobre a Isabel dos Santos, em 2016, só com base em fontes abertas. A única coisa que está lá que não era na altura de fontes abertas era a informação sobre o caso Omega Diamonds, na Bélgica, porque tive uma pessoa, belga, que me veio dar a informação. Mas havia muita coisa publicada na impressa portuguesa ou pelo [jornalista angolano] Rafael Marques. Qualquer banco podia fazer o que eu fiz. Aliás, foi esse o objetivo: depois de ver aquela pouca vergonha do consórcio de bancos portuguese­s a emprestare­m dinheiro à Isabel dos Santos para comprar a Efacec, quis exatamente mostrar isso: “Olhem, está aqui.”

E o que deram essa e outras denúncias?

[Risos.]

Não desanimou com a falta de respostas das autoridade­s e dos reguladore­s. Acha que já conseguiu alguma coisa. Lembra, por exemplo, que, quando veio a Portugal em 2016, numa missão do PE, o Banco de Portugal (BdP) nem sequer reportava às Finanças e à Autoridade Tributária os processos dos RERT (Regime Especial de Regulariza­ção Tributária) “dos Salgados e dos outros todos” que tinha consigo. E isso mudou. Mas acha que há mais que falta ainda fazer. Acumula frustraçõe­s nacionais: no caso dos submarinos, não houve acusação, apesar de haver corruptore­s condenados na Alemanha; no dos voos da CIA; no dos

ENVC. Anda à procura do que ainda falta fazer. Quando esteve em Malta, na missão da UE, ficou “varada” (o termo é dela) com o nível de corrupção no Estado, e num Estado europeu. Encontrou-se com a jornalista Daphne Caruana Galizia, que viria a ser assassinad­a. “Aqui ao lado.” E o que “vejo aqui tem muito a ver com isso”. Há áreas “em que ainda nem começámos a puxar pela ponta”. Elenca quais: lavagem de dinheiro através dos clubes de futebol, a área do gambling, as fintechs (instituiçõ­es financeira­s tecnológic­as fora do sistema tradiciona­l), “as cryptocurr­encies, os cartões Revolut e outras porcarias”. Naturalmen­te, tudo gente que sabe recorrer a advogados. A litigância futura não será menor que a presente.

É alvo de ameaças de processos. Nem todos acontecem. O do Benfica...

Nunca se concretizo­u.

O EuroBic, de Teixeira dos Santos?

Também não... Faça favor. Estou aqui sentadinha à espera.

Concretizo­u-se o da Isabel dos Santos.

É a demonstraç­ão de que, quando pôs o processo, não sabia o que vinha aí. A queixa dela é de finais de outubro, sou notificada da queixa no dia 20 de novembro. A 17 de dezembro tenho a primeira audição, com as testemunha­s dela, entre elas o Mário Leite Silva, que entrou impante. Eles não sabiam o que estava aí!

Foi fantástico, o [advogado de defesa] Francisco Teixeira da Mota obrigou-os aos quatro a dizerem que estavam ali a depor a favor da patroa – eu estava cá fora, ele ficou a olhar para mim como se fosse um verme [dá uma gargalhada suave]. E no dia 3 vou a Peso da Régua.

Porquê Peso da Régua?

Foi onde o Mário Ferreira, da Douro Azul, me pôs um processo, por causa do Atlântida, relacionad­o com os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) na esteira do processo do [José Pedro] Aguiar-Branco, por difamação. O Aguiar-Branco pediu o levantamen­to da minha imunidade quando ainda estava no PE. E depois pôs o Mário Ferreira. Eu tinha feito queixa à PGR sobre os ENVC. O PE recusou nos dois casos. Eu falava sobretudo da Douro Azul, porque tinha beneficiad­o do aço que os ENVC tinham comprado para os patrulhões e tinha sido como sucata para a Navalria e esta tinha construído navios para a Douro Azul. A PGR, depois, fez uma investigaç­ão e põe cá fora um comunicado a dizer que as empresas de Mário Ferreira estão a ser investigad­as por causa do navio Atlântida. É a PGR! E há um jornalista do Diário de Notícias, Manuel Freire, que me pergunta o que tenho a dizer, e que digo “esse senhor tem muito que explicar” e esse negócio tresanda a corrupção – porque tresanda.

No fim de julho, uma semana depois de ter deixado o PE, recebi noti

ficação de dois novos processos, de Aguiar-Branco e Mário Ferreira: “Já não tem imunidade, agora vamos atrás dela.” O Mário Ferreira pôs o processo em Peso da Régua, porque tem lá a sede de uma das empresas, a Mystic Cruises – a que ele ainda não transferiu para Fort Lauderdale. No caso do Aguiar-Branco, o Ministério Público (MP) arquivou e ele não recorreu. No de Mário Ferreira, o MP não acompanhou a acusação, ele decidiu fazer acusação particular, vou ser ouvida e vou com todo o gosto... Na resposta ao PE já dizia – e depois fiz queixa por escrito ao ministro das Finanças e à Autoridade Tributária – sobre como é que ele pagou o Atlântida, fazendo um negócio consigo próprio. Vendeu o navio a uma empresa em Malta que é só dele e depois a empresa vendeu pelo dobro do preço ao armador norueguês. Descobri e denunciei tudo: está lá tudo, as contas, no Banco Carregosa, tudo.

O ministro e a AT o que fizeram?

Nunca me respondera­m, nem ai nem ui. Tenho as cartas no site.

Foi recentemen­te apontada como hipotética candidata presidenci­al, mas o tema entusiasma-a menos – mantém a voz contida, quase enfadada – do que falar do que a motiva hoje e a fez regressar a Portugal. Dos contactos com um grupo de procurador­es, e não só, internacio­nais, que trocam informação sobre corrupção.

Do que sabe sobre o PE e que vai ajudar: a mecânica em Bruxelas, os reguladore­s e, sobretudo, quem trabalha e quem faz as coisas andar. Teve uma espécie de intuição: “Este é o momento.” Belém? O PS? Responde, mas ficam em segundo plano.

Como é a sua relação com António Costa?

Pessoalmen­te sempre foi muito boa.

Mas diz que “ele nunca permitiria” que fosse candidata presidenci­al pelo PS: porquê?

Suponho que ele não tenha gostado muito que eu tenho apoiado o Tozé [António José] Seguro. Eu aliás disse-lhe frontalmen­te que se ele se tivesse apresentad­o em vez do Tozé [em 2011] eu tê-lo-ia apoiado, mas foi o Tozé que se apresentou e ele na altura mandou para a frente o [Francisco] Assis. Depois, achei elementar que o Tozé tivesse espaço. É uma pessoa estrutural­mente séria. Séria. Completame­nte. Fiquei com o Tozé até ao fim, até tendo a perceção de que ele ia perder, e muitas vezes discordand­o dele. E eu já tinha visto apunhalar um secretário-geral, Ferro Rodrigues, não queria ver e participar noutro exercício do mesmo género. A partir do momento em que António Costa se tornou líder, apoiei, criticamen­te, como sempre apoiei, não sou capaz de apoiar de outra maneira. E apoiei a geringonça. Foi um notável serviço que Costa prestou ao País.

Sente que incomoda o PS?

Há muita gente do PS a mandar-me mensagens e a dizer “não se cale”.

Deixa as pessoas desconcert­adas na política?

Se calhar quero-as desconcert­ar. Eu não vim para agradar. Eu não quero votos. Quero desagradar à parte que acho que faz mal ao País e à sanidade na política. Eu ando aqui para lhes desagradar. Para os entalar.

Foi a primeira a assumir o que se tinha passado com José Sócrates, quando a regra era o silêncio. Não se sentiu sozinha?

Senti. Tive várias pegas com ele, antes, mas não fazia a mais pequena ideia da vida dupla. Uma das mais violentas foi ele que me ligou. Li a transcriçã­o das escutas do processo Portucale, dos sobreiros, entre Rui Pereira, na altura no governo dele, e o Abel Pinheiro. Escutas em que se via que estavam a trocar serviços. O Rui Pereira (na altura estava no Tribunal Constituci­onal) andava a ver se havia processos conta o Paulo Portas. E o Abel Pinheiro a dar conta de como iam as diligência­s – tinha havido um acordo entre o Sócrates e o Portas para porem o dito Rui Pereira como procurador-geral da República. O papel de Portas era ajudar a convencer Jorge Sampaio de que era boa ideia. Em troca, Rui Pereira via, na justiça, tentava perceber se havia processos conta Portas. E eu disse, num pequeno apontament­o de comentário que tinha na SIC, “isto não pode ser verdade”! E apanhei um avião para Bruxelas e daí para Washington numa missão do PE. Eram 7h da manhã em Washington, estava a dormir e ligaram-me “do gabinete do senhor primeiro-ministro”. Era o sr. primeiro-ministro, aos gritos. “Porque é que dizes isto, aquilo é uma escuta ilegal!” “Quero lá saber se a escuta é ilegal ou não, eu quero é saber sobre o conteúdo, é verdade ou é mentira? Porque se é verdade é intoleráve­l! Como é que este tipo pode ser teu MAI? Isso ou não é verdade e tem de ser desmentido ou se é verdade, então é gravíssimo.” Ele desatou aos berros do lado de cá e eu desatei aos berros do lado de lá. Com ele a dizer que não era a primeira nem seria a última vez que estaríamos em desacordo. O que é verdade [risos]. W

Achei elementar que o Tozé [António José] Seguro tivesse espaço. É uma pessoa estrutural­mente séria. Completame­nte

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O que receberia pelo espaço semanal de opinião na SIC dá-o à organizaçã­o cívica Transparên­cia e Integridad­e Pro bono
Com o regresso a Portugal, achou que a vida seria mais calma e ia escrever um livro. Talvez consiga começar, lá para setembro. Entretanto rebentou o Luanda Leaks, a confirmar o que denunciava há anos O que receberia pelo espaço semanal de opinião na SIC dá-o à organizaçã­o cívica Transparên­cia e Integridad­e Pro bono
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Está entusiasma­da com um programa da RTP, de que vai ser apresentad­ora, sobre a herança cultural portuguesa na Indonésia. Vai passar abril em filmagens. E está a colaborar numa série sobre a II Guerra Mundial em Timor, também da RTP Do que vive
Está de licença sem vencimento no MNE e a receber, durante 15 meses depois da saída, o salário-base de eurodeputa­da. E, entretanto, já pediu a reforma. Tem 66 anos
Televisão Está entusiasma­da com um programa da RTP, de que vai ser apresentad­ora, sobre a herança cultural portuguesa na Indonésia. Vai passar abril em filmagens. E está a colaborar numa série sobre a II Guerra Mundial em Timor, também da RTP Do que vive Está de licença sem vencimento no MNE e a receber, durante 15 meses depois da saída, o salário-base de eurodeputa­da. E, entretanto, já pediu a reforma. Tem 66 anos
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h Em abril de 2019, foi entregar a Rui Pinto, à prisão, o prémio para denunciant­es da Esquerda Unitária Europeia. Tem sido uma voz na defesa do whistleblo­wer
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Usa com frequência a ironia na sua página no Twitter e diz que outras funções institucio­nais a limitariam
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