A dupla vitória de Salgado
Convocado pelo Ministério Público como sua testemunha, Ricardo Salgado compareceu há dias em tribunal num julgamento contra jornalistas, que respondiam pelo crime de desobediência por divulgação dos vídeos com o seu interrogatório e o de Sócrates. O momento merecia ter sido filmado ou fotografado. Ricardo Salgado, explorando ao máximo a sua gravitas e as vantagens da idade avançada (“a memória já não é a mesma…” ; “já não ouço muito bem…), apresentou-se como uma verdadeira vítima no banco das testemunhas. Bastou-lhe o simbolismo do momento, não precisou da retórica para inflamar o alegado sofrimento pela exposição do interrogatório. A diligência demorou escassos cinco minutos.
Na verdade, Salgado bem sabia que o simples facto de estar num tribunal como testemunha de uma acusação e não como arguido era em si uma expressiva vitória sobre o sistema judicial e nós todos. Cinco anos depois do início dos processos contra o seu legado de banqueiro, Salgado não respondeu ainda por nada de substancial num tribunal judicial e, pelo contrário, é apresentado como alguém que tem um sofrimento atendível pela justiça para jogar contra o jornalismo, essa profissão de gente estouvada que se está nas tintas para os altos interesses do Estado… Imagens sintomáticas dos tempos que correm no País, em nome da dignidade da pessoa humana, esse valor fundamental que alguns juristas adoram invocar, mas que raramente protegem quando se trata do Zé e da Maria.
Ricardo Salgado estreou-se como testemunha do Ministério Público num tribunal judicial, enquanto os réus eram, simbolicamente, os jornalistas. A ideia de defesa do interesse público vergou-se perante o orgulho e a imagem de autoridade do Ministério Público, com a ajuda do cidadão Ricardo Salgado. O Ministério Público português, pasme-se, dá um grande valor à perseguição do crime de desobediência, aquele que protege o velho respeitinho salazarista como bem jurídico essencial, enquanto procrastina na investigação da corrupção e de todo o rol de crimes assacados aos protagonistas dos casos GES/BES.
Pelo andar da carruagem, aliás, Ricardo Salgado jamais se sentará no banco dos réus. Por estes dias, o Ministério Público convenceu-se de vez de que a Suíça nunca enviará os elementos de prova essenciais recolhidos em buscas naquele país. Quase quatro anos passados à espera de provas cujo envio depende de um procurador-geral suíço pelos vistos apoiado por um muitíssimo influente genro de Salgado no sistema bancário helvético, o Ministério Público decidiu começar a escrever a acusação do processo principal. Está prometida para daqui a três ou quatro meses, mas, a crer na importância das provas suíças, a acusação começa a caminhar já coxa. Discretamente, em silêncio, Ricardo Salgado conquista assim uma segunda vitória. Uma acusação que será pesada mas, eventualmente coxa, estará destinada a mais uma instrução demoradíssima, que empurrará um julgamento para daqui a uns dois ou três anos. Depois, bem, depois não se sabe quanto tempo demorará um julgamento destes, caso se realize. A dupla vitória obtida por Salgado neste arranque de 2020 representa, pois, a projeção social da ideia de impunidade e a garantia de que ela vai continuar por muitos anos.