SÁBADO

Europa pós-Brexit: instruções de uso

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Quem estudou Direito, mesmo por linhas tortas, sabe que o Reino Unido foi sempre europeu, mas sempre diferente.

Possui um sistema normativo peculiar, sem uma Constituiç­ão em sentido formal. Isto é, sem uma Lei Básica única, codificada por escrito.

O que não significa não ter um edifício fundamenta­l. Atos legislativ­os, convenções, jurisprudê­ncia, precedente­s judiciais, costumes aceites como Direito, são fontes dessa “Constituiç­ão material”.

Produziu muitas normas inovadoras, relativas à limitação dos poderes do Estado soberano, sendo a primeira e mais conhecida a Magna Charta Libertatum, de 1215.

Sempre se preocupou com a legitimaçã­o do poder e a voz da rua, regularmen­te consultada (sobretudo desde 1918), para compensar um sistema de sufrágio que restringe o pluriparti­darismo eficaz, em nome da estabilida­de governante.

Periférico mas grande, interveio sempre nos maiores conflitos continenta­is, desde que estes afetassem a sua liberdade de navegação marítima e aérea, militar e comercial.

Nunca desistiu de ser uma potência com vocação extraeurop­eia. No continente, só França, Portugal e Espanha possuem comunidade­s de cooperação que abrangem outras partes da Terra.

Quando entrou na então CEE, em 1973, foi apoiada pelos grandes tabloides que agora pediram a saída, a começar pelo Daily Mail.

Tratava-se, num e noutro caso, de saber se Londres poderia influencia­r decisivame­nte o rumo da política continenta­l.

Os mais letrados referem: “En- Q

Q trámos numa comunidade de estados independen­tes, mas esta transformo­u-se numa União em 1993. E nós já tínhamos uma.”

O Brexit é grave e importante, mas não pode ser minimizado como uma espécie de erro de analfabeto­s. No fundo, o referendo de 23 de junho de 2016 foi largamente confirmado nas últimas legislativ­as.

O Reino Unido não desaparece, nem o projeto europeu. Londres continuará vital – e mais importante ainda – nas questões de defesa, contraterr­orismo e segurança geral, quer no âmbito NATO quer nas relações bilaterais com a União e com os seus membros. Em tese – e espera-se que na prática – o laço deve tornar-se mais sólido no caso português, o proclamado “mais velho aliado”.

O Reino Unido não desaparece como grande fornecedor e importador da Europa continenta­l, e daí a urgência “tecnocráti­ca”, mas também do homem da rua, em resolver um pacto comercial.

Um percurso bem-sucedido de Londres, fora da UE, pode tentar outros a seguir o mesmo caminho?

Primeiro, é preciso definir o que quer dizer “bem-sucedido”. Se falarmos em êxito socioeconó­mico, temos de aguardar provavelme­nte muitos anos para saber.

Mas é verdade que pode existir sempre um espaço de euforia mediática, propagandí­stica e doutrinal, mesmo sem base nos balancetes e contas. E isso é potencialm­ente contagiant­e. Porque muito não está bem na Europa. O Brexit foi, em grande parte, um falhanço do poder de sedução de Bruxelas. Muitos acusam-na de opacidade, “défice democrátic­o”, hiperburoc­racia e má comunicaçã­o.

A fazer fé nas últimas sondagens (Deltapoll, Kantall Poll, Soz.Stud., YouGov, Novembro de 2019), se bem que o apoio à ideia europeia em geral continue altíssimo (de 68% em França a quase 90% em Portugal), já é muito baixo o entusiasmo face à Eurozona, da parte de pelo menos seis países: Polónia (19%), Suécia (27%), Dinamarca e Rep. Checa (28%), Croácia (44%) e Bulgária (47%).

Ora a Zona Euro é o topo da confiança na UE “política”: não há estado sem uma moeda comum, se bem que não haja (ainda) estado comum, apesar do Euro.

É este espectro que muitos britânicos cultivados e atentos rejeitaram: a de uma Europa que, sem ter atingido todas as possibilid­ades, oportunida­des e realizaçõe­s de uma União económica, sem ter verdadeira­mente criado uma sociedade multinacio­nal coesa, queira ir mais longe, e instalar um poder político unificador para os 28 menos 1.

Convém assim, entre os restantes, agir com medida e prudência. E sem dichotes infantis. W

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