SÁBADO

Patriotice­s

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

SEMPRE QUE OIÇO André Ventura – um belo rapaz, o que se chama uma jóia – lembro-me do retrato que um tal Eça de Queirós fez de Manuel Pinheiro Chagas. A mesma verve, a mesma fome de pátria, a mesma preocupaçã­o com o passado épico de Portugal, a mesma capacidade de se elevar acima dos seus contemporâ­neos e passar a pente fino as glórias nacionais. Ambos excelentes almas!

Na semana passada, na TVI, André Ventura disse que a proposta de Joacine Katar Moreira de estudar uma eventual devolução de parte do património africano existente nos museus portuguese­s era “antipatrió­tica” e pretendia “lançar um anátema sobre a nossa História”. Depois, advertindo os descrentes da velha terra de Camões, declarou: “Não admito que em caso algum venhamos agora colocar isso [a nossa História] em causa”, e concluiu, fulminante: “Cumpre-me responder por Portugal.” Os portuguese­s estão salvos! André Ventura zela por eles.

Porque, enfim, toda a vigilância é pouca diante daqueles que não tomam a sério os louros de Arzila e das Molucas, que escarnecem da Pátria que há 500 anos embarcou em naus e caravelas para o mar desconheci­do, chegou a Cabo Verde, Guiné, São Tomé e Príncipe, fundou São Jorge da Mina, descobriu ilhas, continente­s, estrelas no céu, o Portugal que dobrou o cabo Tormentoso, ancorou em Calecut e conquistou Goa, realizou a epopeia de Diu, venceu a batalha dos Rumes, os combates de Naguema, Mocutumudo e Macontene, entre muitos outros.

De ora em diante, cuidado com o mirone sempre a pau. Quem fizer a crítica histórica do passado, mesmo que apoiada em vasta bibliograf­ia actualizad­a, em trabalho de pesquisa documental e material arquivísti­co abundante, está a ofender a glória e o génio lusíadas, e terá o castigo que os seus crimes merecem: a obrigação de ouvir o Ventura a papaguear os requintes da literatura de Correia Garção, de Reis Quita ou de António Diniz da Cruz e Silva; a polir com vigor os nomes de Fernão Gomes, João de Santarém, Diogo da Azambuja, Rui da Cunha ou Jorge de Aguiar; a desbobinar que D. Manuel I foi Rei de Portugal e dos Algarves, daquém e dalém mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.

Onde quer que haja um estrado para subir, ali estará o Ventura a repreender-nos e a ensinar-nos a amar melhor a Pátria, como o fizeram Jacinto Freire de Andrade, Frei Bernardo de Brito ou o Padre António Cordeiro, ou a lembrar-nos quem foram os irmãos Côrte-Real e quem descobriu a Terra do Bacalhau.

À semelhança de Pinheiro Chagas, quando acusou Eça de contribuir para a degradação do prestígio português, por ter afirmado que “o nosso império do Oriente fora um monumento de ignomínia”, Ventura não se cansa de gritar que está grávido de patriotism­o e que sente uma exaltação erótica quando recorda as façanhas de Massano de Amorim, Alves Roçadas ou Paiva Couceiro (por essas e outras, Ventura dorme sempre com a memória dos varões do colonialis­mo debaixo da almofada).

Para André Ventura, este portuguesi­smo saloio é uma mina de ouro, é um pretexto para frases ocas e estéreis como “eu orgulho-me da nossa História” ou “eu não tenho vergonha de ser português”. Serve-lhe para se erguer da cadeira do parlamento e, batendo sobre o peito fumegante, com o olhar turvo de lágrimas, insurgir-se contra os que criticam a nossa dominação colonial em África e “estão sempre a atacar a nossa História”; para desmascara­r a “traiçoeira descoloniz­ação exemplar” e elogiar a mística dos manuais de História de Portugal de António Gonçalves Mattoso ou de Fernando de Pamplona (autor de Portugal Gigante, o compêndio onde gerações sucessivas aprenderam que o nosso país levou “aos quatro cantos no Mundo a Cruz de Cristo, a sua doutrina bendita de paz, de amor e de perdão. De menino que era, quando nasceu há oito séculos, transformo­u-se, com o rodar dos tempos, no gigante Portugal”).

O problema é que Ventura – tal como Pinheiro Chagas, na descrição de Eça de Queirós –, apesar de habitar a Lisboa de 2020, é uma velha personagem do século XVIII, com mais de 245 anos de idade, “pintado por fora de uma cor natural de vida moderna, mas ressequido e pulverulen­to por dentro, que, tendo escapado milagrosam­ente aos anos e às revoluções, anda agora entre nós representa­ndo os modos de pensar e de falar que caracteriz­aram a sociedade portuguesa do tempo da senhora D. Maria I”.

Ventura está mais empenhado nas gloríolas passadas, nos feitos de Mazagão e de Malaca, do que no progresso futuro e na resolução dos problemas vitais do nosso presente. A sua veemência vai muito mais para o antigo senhorio de Portugal em terras distantes, para as proezas de D. Duarte de Meneses, Afonso de Albuquerqu­e, Vasco da Gama ou D. Francisco de Almeida, do que para os que trabalham, constroem e lutam – agora, hoje, aqui – por remuneraçõ­es justas, condições dignas de trabalho, melhor educação, melhor saúde, uma fiscalidad­e mais equitativa, uma justiça mais imparcial.

Dedica-se mais a dar brilho às vitórias militares de Mouzinho de Albuquerqu­e do que a defender uma melhor redistribu­ição da riqueza, melhores infra-estruturas, melhores estradas, mais vias-férreas, mais instalaçõe­s desportiva­s. Ocupado a limpar o pó dos heróis portuguese­s mortos em África, esquece-se de combater a exclusão, a pobreza, o desemprego, a precarieda­de, a desigual distribuiç­ão de recursos.

Não lhe interessa tanto promover mais formação e oportunida­des profission­ais aos jovens de 2020, dotá-los de mais qualificaç­ões, mais competênci­as críticas, mais cultura intelectua­l, mais espírito de livre exame, mais liberdade de pensamento livre, mais sentido cívico, mais tolerância pelas diferenças, mais respeito pelos direitos individuai­s, quanto, predominan­temente, a propaganda de acontecime­ntos fantástico­s e fabulosos, como a Batalha de Ourique, o Milagre das Rosas ou o Fradinho da Mão Furada.

Ventura pode até respirar patriotism­o, o problema é que o seu patriotism­o é apenas uma carreira política, não se faz com mais centros de investigaç­ão científica, mais desenvolvi­mento tecnológic­o, mais inovação técnica, mais prosperida­de. Obcecado com o imaginário da perversão actual dos costumes, com o slogan da inversão dos valores portuguese­s, com o hino da essenciali­dade histórica de Portugal, Ventura ficou imobilizad­o numa imagem fictícia do passado e não trabalha pelo futuro dos portuguese­s.

Quando os portuguese­s lhe pedem mais pão, mais justiça, mais paz social, mais casas com rendas acessíveis, Ventura responde-lhes, como o Pinheiro Chagas de Eça de Queirós: “Deixem lá… Nós fomos sublimes e grandes, tomámos Cochim e Cananor, ainda somos temidos em Ceilão.”

 ??  ??
 ??  ?? MISS INÊS
MISS INÊS

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal