SÁBADO

JOÃO PEDRO GEORGE

- João Pedro George

ESTA É AQUELA

altura da vida em que posso dizer: eu tinha razão. Há alguns anos, para ser mais exacto em 2008, propus a algumas editoras uma colecção de obras literárias apocalípti­cas e pós-apocalípti­cas, um subgénero da ficção científica que interessav­a a cada vez mais leitores. Comigo levava uma lista de obras, muitas das quais sem direitos, e um rol de argumentos, simples e evidentes, para os persuadir de que seriam um êxito de vendas.

Não é preciso nenhum talento específico para observar que as pessoas quase sempre viveram obcecadas com o perigo da sua própria extinção. Todavia, só no século XX é que o ser humano, graças ao progresso tecnológic­o (e à nossa tendência para sujar e degradar tudo o que nos rodeia), se tornou capaz de converter todo o planeta num cemitério. Naquele ano 2008, em particular, o vírus H5N1 era a grande ameaça e os jornais publicavam artigos com títulos como “Gripe das aves pode provocar o fim da Humanidade”.

De então para cá, tem-se falado bastante da multiplica­ção dos vírus, da proliferaç­ão de bactérias, parasitas, micróbios, gérmenes patogénico­s letais, microorgan­ismos resistente­s aos antibiótic­os, que começam a sair dos hospitais; dos mosquitos que, protegidos pelo aqueciment­o global, e aproveitan­do o movimento do vento e das partículas de areia nas grandes nuvens de pó saariano, conseguem viajar dos trópicos para a Europa, saltar de um continente a outro, e transmitir malária, febres hemorrágic­as como Ébola, Lhasa, Marburg e outras doenças infecciosa­s que podem levar à morte de muitos milhões de pessoas.

Não apenas doenças, também desastres irreversív­eis ligados a explosões nucleares, bombas atómicas ou fenómenos meteorológ­icos extremos causados pelas alterações climáticas, como a subida do nível do mar em resultado dos degelos, que inundarão as zonas costeiras e obrigarão à deslocação de populações inteiras.

A Humanidade, como se vê, dispõe de um variado catálogo de métodos para aniquilar a vida sobre a Terra. Por estas e por outras, o fim do mundo ou o crepúsculo da civilizaçã­o tornaram-se calamidade­s cada vez mais previsívei­s. E a espécie humana um conceito manifestam­ente provisório.

O suficiente, pensava eu, para pressupor que as obras de literatura distópica teriam índices de vendas compensado­res, que uma colecção deste tipo de livros – assentes na seguinte premissa: “E se amanhã quase todos os seres humanos desaparece­ssem, restando apenas alguns grupos dispersos de indivíduos?” – seria bem acolhida pelos leitores.

Não foi essa a opinião das editoras, pois todas me deram sopa! Na sua sonolência vegetativa e no seu conservado­rismo, as nossas editoras apenas concebem as sempre idênticas e as sempre insípidas colecções de literatura de viagens e de literatura de

humor. Convencê-las a apostar noutros modelos, vencendo o muro da sua teimosia e do seu conformism­o, exige muito trabalho de pedreiro. Adiante.

A melhor maneira de nos distrairmo­s dos desastres, das catástrofe­s, da possibilid­ade de desapareci­mento do ser humano é, paradoxalm­ente, transforma­ndo tudo isso em fonte de entretenim­ento, através das obras literárias, dos filmes, das séries de televisão, dos videojogos, etc. De tal maneira que, segundo Fredric Jameson, se tornou hoje mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalism­o”.

Agora que tantos de nós temos de passar a maior parte do tempo em casa – e em que já não se trata de teorizar sobre a tragédia, mas de vivê-la –, deixo-vos algumas sugestões de leituras que constavam da minha lista:

The Last Man (1826), Mary Shelley: considerad­a a obra pioneira da moderna ficção apocalípti­ca, é a história do último homem a sobreviver num mundo pandémico, infestado por uma praga que se espalhou na Europa.

After London (1885), Richard Jefferies: depois de uma catástrofe que despovoou Inglaterra, o autor descreve a vida medieval, próxima da barbárie, de um grupo de sobreviven­tes.

The Scarlet Plague (1912), Jack London: passado em 2027, 70 anos após a epidemia escarlate ter dizimado a população mundial, um dos sobreviven­tes tenta partilhar com os seus netos a importânci­a do conhecimen­to e da sabedoria (tradução portuguesa: A Peste Escarlate, Inquérito, 1983).

Earth Abides (1949), George R. Stewart: a civilizaçã­o desaparece devido a uma epidemia, sobreviven­do apenas alguns seres humanos dispersos. A personagem principal, Isherwood Williams, funda uma nova civilizaçã­o baseando-se nos princípios dos antigos nativos norte-americanos (considerad­o pioneiro na defesa dos valores ecológicos).

The Chrysalids (1955), John Wyndham, passado no futuro, numa comunidade que sobreviveu ao desastre da civilizaçã­o (As Crisálidas, Caminho, 1985).

The Death of Grass (1956), John Christophe­r: um vírus mutante ataca todas as plantações agrícolas causando uma fome mundial; relata a viagem da família do narrador por uma Grã-Bretanha mergulhada na anarquia (A Última Fome, Europa-América, 1982).

On the Beach (1957), Nevil Shute: uma guerra nuclear dizimou o Hemisfério Norte e começou a devastar o Hemisfério Sul; o enredo passa-se dentro um submarino norte-americano que estava estacionad­o na Austrália e que ruma aos EUA, onde vários sinais de morse indicam que algumas pessoas terão conseguido sobreviver à radiação. Salvá-los e saber como é que sobreviver­am é a missão dos tripulante­s do submarino.

Damnation Alley (1967), Roger Zelazny: decorre na Califórnia, após uma guerra nuclear. Os EUA encontram-se divididos em estados policiais, impedidos de comunicar por ar (furacões constantes impossibil­itam as viagens de avião) e por terra, devido às violentíss­imas tempestade­s quotidiana­s. Entretanto, face à iminência de uma praga que ameaça acabar com todos os seres humanos, um condenado, membro dos Hells Angels, é enviado numa missão suicida: percorrer o Damnation Alley, entre Los Angeles e Boston, para entregar uma vacina.

Bom proveito! E não se esqueçam: nesta hora difícil, ficar em casa a ler um livro é o mais saudável dos passatempo­s.

P.S. O coronavíru­s fez disparar as vendas de A Peste, de Albert Camus, e de Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. W

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

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