JOÃO PEREIRA COUTINHO
Itália não fica em Marte; os velhos e os doentes italianos não são lixo; não estamos em 1939. A crise económica que nos espera será nada quando comparada com o desastre moral em que a Europa se afoga novamente
Ensaio sobre as cegueiras
AQUI HÁ UNS ANOS, uma jornalista dizia-me que preferia fazer comentário sobre assuntos internacionais. Cá dentro, o meio é pequeno, abespinha-se facilmente – e há sempre a hipótese de levar com um processo. Criticar o Bush (filho) era mais seguro pela razão simples, e assaz racional, de que ele não se importaria.
E quem fala de Bush, fala de Trump. No New York Times, David Leonhardt resolveu fazer uma cronologia sobre a forma calamitosa como o nosso Donald lidou com a crise pandémica. Digamos apenas isto: até ontem, o homem achava que o vírus era inofensivo. Razão pela qual falhou na produção de kits para fazer testes e nos avisos à população para que se protegesse.
Sim, a estupidez do homem é gigantesca. Mas é preciso recordar aos nossos jornalistas, a começar por aqueles que preferem fazer comentário sobre assuntos internacionais, que há várias formas de praticar a estupidez. A impreparação e o desleixo que os nossos governantes e “especialistas” exibiram nos últimos tempos teriam deixado o Donald orgulhoso.
Foi a mesma displicência com que se olhou para a ameaça. A mesma bazófia com a prontidão do nosso SNS. A mesma incapacidade para alertar os portugueses para o perigo. A mesma balbúrdia para impedir, em tempo oportuno, grandes concentrações de pessoas. A mesma lentidão em tomar medidas restritivas. Sem falar dos kits para a realização de testes, que só agora, depois dos contágios, avançarão em força.
Tivemos mais tempo do que os outros. Até tivemos os erros dos outros para aprender. Mas o Trump é que é um palhaço/imbecil/boçal [escolher à vontade o melhor insulto; o homem não processa].
SERÁ QUE A UNIÃO EUROPEIA vai sobreviver depois desta crise? Não sei. Mas, aqui entre nós, será que merece? Não falo apenas da total incapacidade para desenhar uma resposta comum à pandemia, em articulação com todos os estados-membros. Falo do que se passa em Itália, onde já se aplica aos infectados as mesmas regras que vigoram em tempos de guerra. Quem tem mais de 80 anos ou comorbilidades significativas não tem acesso a cuidados intensivos. O que significa, para abreviar a conversa, que há uma parte da população deixada à sua sorte e ao seu fim.
Nos livros escolares, é comum dizer-se que a União Europeia nasceu para evitar as barbáries em que o continente se especializou na primeira década do século XX. E, entre todas as barbáries, a ideia de que há classes diferentes de seres humanos – os superiores e os dispensáveis – foi talvez a maior cicatriz de todas.
Que esse pensamento, por razões radicalmente distintas, tenha que violentar a consciência dos médicos italianos, dá bem a medida do fracasso da União Europeia em socorrer um dos seus estados. Itália não fica em Marte; os velhos e os doentes italianos não são lixo; não estamos em 1939. A crise económica que nos espera será nada quando comparada com o desastre moral em que a Europa se afoga novamente.
SEMPRE ME INTERESSEI por histórias em que as virtudes de alguém se convertem em vícios intoleráveis. Basta, para tanto, que as circunstâncias mudem sem que o próprio o perceba.
O caso do escritor P.G. Wodehouse ilustra o que digo. Até 1940, Wodehouse era adorado pelo público britânico. Não admira: como escritor e humorista, não tinha rival.
Mas em 1940, quando vivia no sul de França, foi capturado pelas tropas nazis. Depois de uma curta passagem pela prisão, foi enviado para a Alemanha, onde passou a emitir os seus hilariantes textos, via rádio, para os fãs americanos. Qual era o mal em exercer a sua arte em Berlim?
De génio, Wodehouse passou a traidor. Nem Churchill, que o adorava, lhe perdoou. O maravilhoso solipsismo de Wodehouse, que funcionara na ficção, não funcionava na nova realidade. Depois da guerra, mudou-se para os Estados Unidos e nunca mais regressou a Inglaterra.
Honestamente, não sei se Marcelo Rebelo de Sousa precisava de ser testado ao novo coronavírus. Muito menos se a quarentena se justificava. Mas o seu génio farsesco, vertido em aparições na varanda e em vídeos caseiros, desta vez não “funcionou”. Cuidado, senhor Presidente: quando Wodehouse perdeu a piada, também perdeu o país. W