SÁBADO

O mundo em quarentena

- Diretor Eduardo Dâmaso

Como se previa aí estão as consequênc­ias de um pequeníssi­mo vírus e o mundo a entrar de quarentena. Em poucos dias, milhares de mortos e infetados em todo o lado, serviços de saúde em colapso, populações acantonada­s na trincheira doméstica, milhares de empresas em Portugal e por essa Europa fora mandam os seus trabalhado­res para um desemprego parcial, milhares de pequenas e médias empresas estão na iminência de fechar, orçamentos de publicidad­e cancelados, turismo parado, milhares de grandes empresas perdem fortunas nas bolsas, milhares de aviões ficam em terra. A vida social e cultural parou em toda a Europa e a economia mundial está no vermelho. A Europa está sequestrad­a pelo coronavíru­s e o mundo para lá caminha. E ninguém se pode queixar de não ter sido avisado sobre os riscos de uma grave pandemia.

Em setembro passado a Organizaçã­o Mundial de Saúde e o Banco Mundial apresentar­am um vasto estudo sobre o risco de pandemias de doenças infecciosa­s muito graves, como o coronavíru­s. As conclusões eram um alerta esmagador. O estudo, intitulado O Mundo em Risco, apontava as mudanças climáticas, a urbanizaçã­o desenfread­a, a falta de água e de saneamento básico em países com estados muito frágeis, conflitos armados muito prolongado­s, a rapidíssim­a circulação de pessoas e bens na nova economia da globalizaç­ão, as migrações descontrol­adas e em massa como as principais causas de criação e propagação de estirpes muito violentas. Sobretudo, o estudo dizia muito claramente que ninguém está preparado para enfrentar este desafio e que os líderes mundiais têm respondido às emergência­s de saúde pública com ciclos de pânico e negligênci­a. Nada mais certo, como agora se prova de forma abundante. Até ao fim de 2019 apenas 59 países tinham um Plano de Ação para a Segurança na Saúde, mas nenhum deles tinha sido expressiva­mente financiado. Na verdade, nem políticos, nem cidadãos, dedicaram uns minutos a esta realidade, que também já não se pode sequer dizer que seja emergente, tendo em conta as décadas que passaram de várias pandemias muito graves.

Hoje, portanto, é fácil fazer o debate da falta de preparação do Estado para enfrentar o coronavíru­s. Mas, nesta fase, não devemos ficar por aí. Em Portugal, tivemos logo a trágica metáfora do empresário italiano que veio visitar uma fábrica de Felgueiras e, ao apresentar sintomas gripais, ficou cinco horas fechado numa ambulância à porta da fábrica. Ninguém sabia o que fazer, ninguém tinha o equipament­o adequado. Por isso, é sem surpresa que se assiste à falta de equipament­os básicos no serviço nacional de saúde e na protecção civil. Muito menos surpreende a falta de ventilador­es, camas nos hospitais, atrasos na linha Saúde 24.

A política de Saúde dos sucessivos governos tem sido um desastre. Às cativações de verbas dos últimos anos, soma-se o corte draconiano do investimen­to na Saúde nos anos da troika e a bancarrota de Sócrates. O SNS, que é uma conquista excecional, não pode continuar a ser debatido em termos puramente ideológico­s. O PS tem-se armado em guardião do SNS, mas pouco mais tem feito para melhorar a sua administra­ção e prestação de cuidados básicos, do que gerir a crise. À sua esquerda, PCP e BE resguardam-se no discurso puramente reivindica­tivo, como se os recursos fossem infinitos. À direita, o PSD e o CDS têm oscilado entre o nada absoluto e a visão ultraliber­al, de favorecime­nto do setor privado. Enquanto não for procurado um verdadeiro consenso político sobre o SNS, alargado ao maior número possível de partidos e assente num rigoroso diagnóstic­o do estado dos serviços, que não mude consoante os resultados eleitorais, nunca sairemos da cepa torta. E, aí, a culpa também é nossa, cidadãos, que pela inércia e pela demissão cívica, consentimo­s aos partidos liberdade total numa matéria em que toda a sociedade deveria estar organizada para se fazer ouvir e pressionar o sentido das decisões, desde logo orçamentai­s. Como é possível pagar uma crise bancária que gerou perdas multimilio­nárias, causadas por gestores criminosos, que nunca foram nem serão penalizado­s, e deixar os profission­ais da Saúde, Educação e Segurança entregues a salários miseráveis!?

Esta crise deveria implicar uma reflexão profunda sobre a relação de nós todos com a política e com a informação rigorosa e objetiva. Não deveríamos olhar para a política com a atual indiferenç­a nem deixar cair as grandes marcas de jornalismo. Uma sociedade bem informada é uma sociedade mais livre e democrátic­a. É necessário refletir sobre os mecanismos de decisão política e sobre o próprio Estado e a sua missão social. É essencial que os partidos percebam que essa exigência não vai parar. Desde logo porque o vírus, como diz a OMS, não será uma exceção no nosso tempo histórico. Se deixarmos, por omissão, ele será o novo normal. Mas essa é uma reflexão a fazer depois de vencermos esta crise. Unidos, atentos e exigentes, venceremos o bicho. W

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