QUEM PAGA A CONTA DO COLAPSO?
Cenário de recessão “brutal” pede uma resposta pública “massiva” que vai afundar as finanças públicas e exigir apoio europeu. Governo e banca avançam medidas inéditas para mitigar crise que trará custos para todos.
Onegócio de Sofia Reis, 36 anos, começou a desaparecer há duas semanas. “Começaram a cancelar-nos todos os trabalhos: eventos, anúncios, figurações, tudo”, conta à SÁBADO. Sofia prevê que só no verão recomece a trabalhar e explica que terá de pagar as despesas do negócio sem que nele entre “um cêntimo”. O receio na frente da saúde levou a uma reação: saiu de Lisboa e foi com o marido, a irmã, os pais, os filhos, “o cão e os gatos de todos” para uma casa que têm no Alentejo, onde vão ficar “até isto passar”. E o receio na frente das finanças pessoais levou a outra reação: dispensou a empregada doméstica “por tempo indeterminado”, um golpe no rendimento daquela trabalhadora, e pediu à escola da filha mais velha para deixar de pagar os 500 euros mensais enquanto estiver fechada. Do lado de lá veio uma resposta negativa: a escola respondeu que os pais deixam só de pagar as despesas de alimentação. “Não percebo”, diz inconformada.
Ao mesmo tempo que resolver a crise de saúde pública é a prioridade, por todo o lado começam a ser travadas batalhas como as de Sofia Reis, para decidir quem paga o quê da fatura gigantesca causada pela paralisação violenta e abrupta da economia. No turismo, por exemplo, milhares de proprietários portugueses com o negócio do alojamento local em queda livre debateram nas últimas duas semanas com os clientes que lhes pediam o reembolso total das estadias canceladas, mesmo nos casos em que o cancelamento contratualizado não o permitia – as plataformas como o Airbnb entraram na contenda e impuseram a devolução total dos valores. As companhias aéreas têm aceitado cancelamentos sem custos dependendo da data ou do destino e essas mesmas companhias serão uma fatura pesada para os estados que terão de as suportar – os títulos de dívida emitidos no ano passado pela TAP, por exemplo, transacionavam a 17 de março a 65% do seu valor nominal, sinal claro de que o mercado está a descontar para já a insolvência da companhia aérea.
Este efeito de milhares de pessoas causa “claramente” um efeito recessivo de segunda ordem, diz o economista Luís Aguiar-Conraria, professor na Universidade do Minho. Este efeito acelera a contração principal, enorme, causada por um duplo choque: na oferta,
com negócios fechados – da Autoeuropa ao café da esquina – e trabalhadores menos produtivos em teletrabalho; e na procura, com a evisceração do consumo em locais públicos e do movimento das pessoas. Todos estes choques têm potencial para se ampliarem entre si. “Quanto mais prolongado for o efeito no lado da oferta pior será o resultado no emprego e, depois, na procura”, explica Paulo Soares Pinho, professor na Nova SBE.
Este efeito multiplicador da contração, que acontece em simultâneo em Portugal e nos seus principais parceiros comerciais, faz com que seja “muito difícil pôr um número nisto”, admite Susana Peralta, também da Nova SBE. Do que não há dúvidas é de que a consequência económica do Covid-19 vai ser “uma recessão brutal” em 2020, aponta a economista. Este impacto era completamente imprevisto há meras duas semanas
NÃO HÁ DÚVIDAS QUE A CONSEQUÊNCIA ECONÓMICA DA COVID-19 VAI SER “UMA RECESSÃO BRUTAL” EM 2020
por quase toda a gente, incluindo a equipa económica do Governo, que esperava que este fosse quanto muito um choque temporário. A linguagem mudou com a mesma velocidade de propagação do Covid-19. “O confinamento forçado está a trazer as nossas economias a tempos semelhantes aos de uma guerra”, afirmou Mário Centeno a 16 de março, em Bruxelas.
Os números da atividade económica em janeiro e em fevereiro que saíram da China esta semana oferecem pistas sobre o que aí vem: quedas a dois dígitos do investimento e da produção industrial. O cenário de disrupção económica das economias ocidentais como aconteceu na China, sobretudo na província de Hubei, era o pior na lista dos economistas da unidade técnica da agência Bloomberg. O choque correspondente chegava para eliminar quase por completo o crescimento de 3% previsto para a economia mundial este ano – um golpe súbito de 2,7 biliões de dólares que, nesta fase, parece um cenário otimista.
A conta maior fica no Estado
Ana Jerónimo, designer freelance com 44 anos, também já contactou o instituto onde a filha de 10 anos tem aulas de inglês e o ginásio que frequenta para tentar reduzir gastos – do ginásio teve resposta positiva, o instituto chutou para canto. “Em relação às nossas despesas fixas como gás, água e por aí fora esperamos medidas do Governo que nos ajudem a superar dificuldades”, afirma.
O choque arrisca ser particularmente violento em Portugal, onde mais de um terço das pessoas inquiridas diz à DECO não ter dinheiro suficiente para chegar ao final do mês e em que as pequenas e médias empresas, muitas delas sobre endividadas, valem 77% do emprego. O colapso do consumo em locais públicos e do movimento de pessoas é uma espada sobre os negócios mais pequenos da restauração, do alojamento, do comércio a retalho e Q
Q dos transportes, nos quais trabalhavam no início do ano mais de um milhão de pessoas. Para quem tem vínculo precário a perda de emprego é já uma realidade.
A gravidade da situação é tal que há um raro consenso entre os economistas – dos mais liberais aos mais socialistas – sobre a necessidade de ser o Governo a entrar em jogo para travar a sangria. “Vai ter de existir uma resposta pública massiva”, afirma Susana Peralta, que com Aguiar-Conraria assinou o manifesto de economistas divulgado e meados do mês a pedir uma intervenção pública europeia concertada. O raciocínio é claro. “Se pusermos as empresas a pagarem isto, vão falir em catadupa”, aponta Conraria. O problema é que se for cada Estado a pagar a conta só por si “vamos ter aí outra crise das dívidas soberanas”, alerta Peralta. Países como Portugal (com uma dívida próxima de 120% do PIB) e Itália (idem) estão numa posição financeira ainda frágil depois da última crise.
A banca e bomba lá fora
Os economistas acreditam que o excedente orçamental de 2019, já sinalizado por Centeno, pode dar lugar ao maior défice orçamental da democracia portuguesa (o maior os registos é de 11,4% do PIB, em 2010). Só as medidas já anunciadas de apoio ao rendimento das pessoas pela Segurança Social – como o pagamento de 66% do salário a quem fique em casa com os filhos – custam dois mil milhões de euros por mês. A isto juntam-se as medidas que terão de ser tomadas para estancar o colapso das empresas – garantias a moratórias bancárias (ver mais à frente), diferimento de obrigações fiscais, etc. – e, do outro lado da balança, o colapso da receita fiscal. O IVA, que depende do consumo, é o imposto mais relevante para a receita e está na linha da frente do impacto.
“Terá de haver um esforço de mutualização da dívida gerada por este choque e uma resposta monetária do Banco Central Europeu”, explica a economista. Num sinal da gravidade da situação, o governo alemão de Angela Merkel admitiu a emissão de dívida conjunta europeia – os chamados “eurobonds” – algo que nunca aceitou durante a crise do euro.
Além do Estado, a banca é uma segunda linha de defesa para o
Bolsa e teletrabalho ‘Trader’ em casa é ‘trader’ assustado
Foi outra segunda-feira negra: no dia 16 de Março a bolsa norte-americana caiu 12% numa só sessão, a maior queda diária desde o ‘crash’ de Outubro de 1987. Entre as razões para o pânico há uma simples: os ‘traders’, quem compra e vende títulos, estão em teletrabalho. Estar fora de uma sala de mercados aumenta a insegurança sobre as decisões, contam dois gestores à SÁBADO, e reforçam a estratégia de saída. O regresso ao local de trabalho não vai salvar a bolsa do Covid-19 – mas pode ajudar. pagamento da factura. Um outro sinal da gravidade do momento no plano económico é o decreto-lei de emergência que o Banco de Portugal e o Governo estão a trabalhar para conceder uma moratória de pagamento das prestações dos créditos por parte de particulares e de micro e pequenas e médias empresas (PME). A proposta inicial do Banco de Por
CENTENO: “O CONFINAMENTO FORÇADO ESTÁ A TRAZER AS NOSSAS ECONOMIAS A TEMPOS SEMELHANTES AOS DE UMA GUERRA”
tugal focava-se nas PME e o Ministério das Finanças acrescentou os particulares. À hora de fecho desta edição as versões de trabalho que circulavam entre gabinetes estendiam a moratória até ao final do ano e tinham condições. “Sobretudo que qualquer período de carência na amortização de capital não seja considerada uma reestruturação e como tal não seja classificada como NPL [crédito malparado]”, explica um administrador de um banco em Portugal.
O passo inédito dos bancos e do regulador pretende mitigar o impacto de uma potencial cascata de insolvências empresariais e pessoais na estabilidade financeira. Fontes do sistema financeiro em Portugal, ouvidas pela SÁBADO, admitem ainda assim o aumento do malparado – empresarial e de particulares – e algumas apontam o risco em setores como o imobiliário (embora muitos dos maiores projetos nesta área tenham sido financiados por estrangeiros, fora da banca em Portugal). A banca está mais capitalizada do que na crise de 2008, diz Paulo Soares Pinho, o que ajuda – o choque, contudo, será sempre feio e terá efeito na política de crédito. “Cerca de 40% do sistema está em mãos espanholas e vai ser relevante ver como gerem esta crise”, diz um banqueiro que preferiu falar sob anonimato.
Mais preocupante é o cenário de crise financeira mundial iminente. Os últimos anos de juros muito baixos – consequência da política dos bancos centrais para sustentarem a recuperação económica após a última crise – levaram a um aumento enorme da dívida contraída a preços baixos. “O montante de empréstimos a empresas com rating pior é mais alto do que em 2008 e está muito espalhado pela banca [internacional]”, diz Paulo Soares Pinho. O colapso da atividade economia com o Covid-19 arrisca ser o dia do juízo final para a bolha no mercado de crédito empresarial – no final de 2019, o FMI alertou que 40% dos títulos de dívida das empresas, cerca de 19 biliões de dólares, não seriam pagáveis perante um choque económico de metade da intensidade do de 2008. O choque, hoje, parece ter ultrapassado essa barreira – vem aí incumprimentos, insolvências e um regresso da aversão ao risco. Num contexto em que os governos do mundo já estão a pôr em prática estímulos que, combinados, valem cerca de um bilião de dólares, estes são fatores que vão aumentar muito as dívidas soberanas e que, mais tarde ou mais cedo, vão pôr à prova o financiamento de países como Portugal – e, mais uma vez, a coesão da zona euro. W