Palmas para os 900 euros/mês
UMA DAS PRINCIPAIS características do tal homem médio português é a capacidade de, acriticamente, avançar para as ondas solidárias. Não há povo no mundo que nos bata neste altruísmo, nesta predisposição para entrar em cadeias humanas de reconhecimento do valor dos outros, da sua importância para a sociedade, no fundo, para a comunidade. Sim, somos os primeiros, desde que haja uma qualquer câmara ligada para o momento ser devidamente partilhado nas redes sociais e podermos reivindicar a qualidade de participante num tão ato de nobreza civil.
Somos, em resumo, umas “marias vão com a outras”, sempre à procura do protagonismo instantâneo, dispostos a fazer parte de algo maior do que nós, a inscrever-nos como diria
José Gil) no mundo. Só que virtualmente. Quando a câmara ou o directo se desligam, regressamos ao pachorrento e invejoso quotidiano, a açambarcar quilos de papel higiénico das prateleiras do supermercado, a recolher todas as latas de atum disponíveis, a esvaziar as arcas dos congelados, a encaixar mais um pacote de bolachas no carrinho.
Depois de dias assim, batemos palmas aos médicos, enfermeiros e auxiliares de acção médica que se desunham no paupérrimo Serviço Nacional de Saúde para salvar vidas. Mas, ninguém se lembrou que, também eles, podem precisar de um pacote de espaguete ou de uma lata de atum. Não, porque ninguém convocou uma corrente humana “vamos guardar uma lata de atum para os profissionais do Serviço Nacional de Saúde que, provavelmente, nem tempo têm para fazer umas comprinhas”.
Há muito que a hipocrisia social campeia e, quanto a isso, pouco ou nada há a fazer. Convém é lembrar que quando os enfermeiros partiram para a greve, reclamando melhores condições de trabalho de forma a evitar a emigração em massa, foram criticados, enxovalhados, acusados de brincar com a saúde dos portugueses. Agora batemos-lhes palmas, em reconhecimento pelo seu esforço, trabalho e abnegação à causa pública. O mesmo acontece com os médicos, que quando reclamam melhores condições de trabalho são abalroados pela máquina governamental de comunicação e a velha história da despesa pública.
Mas, não nos esqueçamos dos auxiliares. A troco de ordenado mínimo, estão atualmente expostos a uma pandemia. Depois disto, como é óbvio, continuarão a chegar ao fim com o mínimo a cair-lhes na conta bancária e, provavelmente, um abraço do Presidente da República, porque isto é tudo o que o País tem para oferecer a quem ganha mal e desempenha uma função imprescindível para o bem estar dos seus concidadãos. Se, um dia, fizerem greve, serão criticados, colocados no pelourinho da opinião pública. Porque já ninguém se lembrará do esforço feito durante a crise do coronavírus.
Se isto fosse um País normal, a atual crise do coronavírus deveria levar a uma profunda reforma do Serviço Nacional de Saúde, colocando-o no topo das prioridades nacionais a par da educação, dando melhores condições de trabalho aos seus profissionais, aliciando-os com a exclusividade a troco de uma remuneração consentânea com tal estatuto. O Serviço Nacional de Saúde não é um capricho da esquerda (que tem outros, refira-se), mas sim um imperativo constitucional num tempo em que, tal como os vírus, se propagam as supostas virtudes dos sistemas privados em matéria de Saúde. As quais, refira-se, são fáceis de explicar: tem dinheiro ou paga um seguro, é tratado. W