A morte da sedução
SE NÃO TIVERMOS
cuidado, a besta microscópica porá em risco a sobremesa no jantar da Humanidade: a sedução. Detidos em casa como carinhosos presidiários, encontramos abrigo nos maridos e namoradas e consolo em pais e filhos. Protegê-los, protegendo-nos, é o mais vital dos trabalhos. A nossa amorosa missão. Porque a ausência de amor é um vírus tão antigo e letal como o novo coronavírus. Mas a razão de viver tornou-se um modo de vida. Isso é perigoso.
Não são apenas os abraços que deixámos de dar, os apertos de mão suspensos no ar, os beijos em lista de espera na garganta. Morreu o tango, finou-se o pasodoble, terminaram os pas-de-deux. Encerrou-se a alegria colectiva do rock, o festim dançante da pop, o brinde furioso das canecas, os high-fives com desconhecidos. Onde ficarão as lápides das mulheres que nunca seduziremos, dos homens com que jamais flirtaremos, das crianças que já não passarão por nós na praia, em pegadas trapalhonas, os sorrisos como bolas de Berlim – ainda poderemos fazer-lhes festas na cabeça? A um metro ou dois?
Nem sequer conheceremos o paradeiro do cemitério onde jazem as canções de engate, os gentis piropos dos gentios, a primeira frase vergonhosamente incapaz, o segundo beijo, a terceira vez que se dá as mãos, beira-rio, a ajuda nas mudanças de um amigo, as velhinhas com cabelo cor de algodão-doce que se ajudam a atravessar a rua – mas como se ajuda alguém a atravessar a rua se não se lhe pode tocar?
A maior pandemia é não partilharmos os dedos, ou o mesmo oxigénio, como figurantes de sagas pós-apocalípticas, escondidos em máscaras que tapam nariz e boca, feitos taipais cibernéticos, outdoors com mensagens de afecto transformados numa teleologia indoor. A disrupção tecnológica já nos tinha desunido. Agora, a profecia cumpriu-se: entrincheirados em uníssono, nunca estivemos tão sozinhos. Podemos odiar por via virtual. Mas o amor digital não existe. Enquanto isso, a hiper-secularidade asfixia-nos: quando deixaram de acreditar em Deus, as pessoas não passaram a acreditar em nada; passaram a acreditar em tudo.
É por isso que, depois da vida, devemos proteger a alegria de viver. Quanto tudo serenar, entre tantas vítimas, não matemos também o que nos torna humanos. W