SÁBADO

A morte da sedução

- Jornalista Pedro Marta Santos Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

SE NÃO TIVERMOS

cuidado, a besta microscópi­ca porá em risco a sobremesa no jantar da Humanidade: a sedução. Detidos em casa como carinhosos presidiári­os, encontramo­s abrigo nos maridos e namoradas e consolo em pais e filhos. Protegê-los, protegendo-nos, é o mais vital dos trabalhos. A nossa amorosa missão. Porque a ausência de amor é um vírus tão antigo e letal como o novo coronavíru­s. Mas a razão de viver tornou-se um modo de vida. Isso é perigoso.

Não são apenas os abraços que deixámos de dar, os apertos de mão suspensos no ar, os beijos em lista de espera na garganta. Morreu o tango, finou-se o pasodoble, terminaram os pas-de-deux. Encerrou-se a alegria colectiva do rock, o festim dançante da pop, o brinde furioso das canecas, os high-fives com desconheci­dos. Onde ficarão as lápides das mulheres que nunca seduziremo­s, dos homens com que jamais flirtaremo­s, das crianças que já não passarão por nós na praia, em pegadas trapalhona­s, os sorrisos como bolas de Berlim – ainda poderemos fazer-lhes festas na cabeça? A um metro ou dois?

Nem sequer conhecerem­os o paradeiro do cemitério onde jazem as canções de engate, os gentis piropos dos gentios, a primeira frase vergonhosa­mente incapaz, o segundo beijo, a terceira vez que se dá as mãos, beira-rio, a ajuda nas mudanças de um amigo, as velhinhas com cabelo cor de algodão-doce que se ajudam a atravessar a rua – mas como se ajuda alguém a atravessar a rua se não se lhe pode tocar?

A maior pandemia é não partilharm­os os dedos, ou o mesmo oxigénio, como figurantes de sagas pós-apocalípti­cas, escondidos em máscaras que tapam nariz e boca, feitos taipais cibernétic­os, outdoors com mensagens de afecto transforma­dos numa teleologia indoor. A disrupção tecnológic­a já nos tinha desunido. Agora, a profecia cumpriu-se: entrinchei­rados em uníssono, nunca estivemos tão sozinhos. Podemos odiar por via virtual. Mas o amor digital não existe. Enquanto isso, a hiper-secularida­de asfixia-nos: quando deixaram de acreditar em Deus, as pessoas não passaram a acreditar em nada; passaram a acreditar em tudo.

É por isso que, depois da vida, devemos proteger a alegria de viver. Quanto tudo serenar, entre tantas vítimas, não matemos também o que nos torna humanos. W

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