Primeira pessoa Os que têm profissões de risco
Empregadas domésticas que começaram a usar máscara, funcionárias de supermercado que veem clientes a cuspir para o chão, táxis que transportam americanos e franceses de regresso aos seus países. Não são médicos nem enfermeiros, mas contactam diariamente com centenas de pessoas.
Joana, 32 anos OPERADORA DE PRODUTOS FRESCOS NUM SUPERMERCADO
h Quando se soube que havia um caso em Portugal, a primeira coisa que começou a subir foi a venda de enlatados. Depois demos pela falta de papel higiénico e a seguir foi a carne. As marcas mais baratas têm falhas maiores. Não tem faltado mercadoria, não dá é tempo para repor os produtos à velocidade que os levam. Na semana passada já chamaram funcionários dos recursos humanos e da contabilidade para fazerem reposição. E nós começámos a colocar produtos em loja à noite, para agilizar o processo e ter menos contacto com os clientes. Por norma é tudo descarregado até às 13h, mas já recebemos um camião de papel higiénico às 23h30. Nunca tinha visto nada assim. Até este fim de semana, quando passou a haver controlo de entradas, os clientes entravam a correr para tirar senhas do talho e da peixaria, falavam para cima de nós, houve uma que cuspiu para o chão mesmo à minha frente. Agora podem estar cá dentro perto de 500 pessoas de cada vez. É uma loja muito grande, estamos habituados ao stress, mas já tive de ajudar uma colega à beira de um ataque de pânico: chegou ao pé de mim a chorar, estava cheia de medo. Somos um dos setores de maior risco e a única coisa que nos deram foi gel desinfetante. Às vezes acaba: uma colega da caixa chegou a trazer de casa, num tupperware. Este fim de semana chegou uma palete de álcool que não foi para as prateleiras, retiraram-na para os funcionários.
Madalena, 55 anos TAXISTA
h Sempre que toco num cliente ou em dinheiro desinfeto as mãos. De resto, não tenho mais nenhum cuidado. Tem sido muito complicado. Hoje já transportei russos, franceses e ingleses para o aeroporto. Na semana passada levei três americanas muito aflitas, só diziam que tinham de regressar até à meia-noite, senão o Trump não as deixava entrar. Tenho menos servi
ços e quase sempre entre 3 e 5 euros – as pessoas têm medo de andar de metro e apanham o táxi, até para distâncias pequenas. Há pouco transportei uma senhora da Av. Óscar Monteiro Torres para a Praça de Londres [em Lisboa], são uns 500 metros, mas tudo o que seja serviço é dinheiro. As praças de táxi estão cheias de gente sem trabalho, na sexta-feira estive duas horas parada. Comecei às 2h da manhã e só parei às 14h. Fiz 20 serviços em 11 horas e meia e 110 euros brutos, porque 65% do que ganho vai para o patrão. Mesmo assim não foi mau: tenho colegas que, à hora de almoço, só tinham feito 30 euros. Num dia normal fazia 30 serviços e 170 ou 180 euros, mas já cheguei a fazer 300. Estou a pensar parar o táxi, mas antes disso tenho um problema para resolver: uma das minhas clientes é uma senhora que faz hemodiálise, sou sempre eu que a transporto. Se não for trabalhar tenho de arranjar um colega de confiança que a leve.
Luísa, 35 anos EMPREGADA DOMÉSTICA
h Trabalho em cinco casas, todas com crianças. No total, são dez miúdos. Numa a minha patroa é diretora de um colégio. Na semana passada comecei a lavar mais vezes as mãos: estendia a roupa, lavava as mãos, ia passear o cão, lavava as mãos. De tal forma que fiquei com a pele seca. No início não tive medo. Quando uma das minhas patroas pôs o marido de quarentena num quarto, achei um exagero. Ele tinha vindo de um cruzeiro na Ásia, onde já havia muitos casos, e durante 15 dias só saía para ir à casa de banho. Nessa altura até me deram a chave de casa, para ele não me abrir a porta. Nessas duas semanas, nunca o vi e acabou por correr tudo bem: não estava infetado. Na semana passada outra casa pediu-me para trabalhar de máscara e luvas e eu disse: se me der uma máscara aceito, mas eu não tenho, fui à farmácia e não havia. A patroa deu-me uma máscara. No sábado comecei a ser dispensada. Algumas casas ainda sugeriram que fosse trabalhar de Uber – habitualmente vou de metro – depois acharam que também isso era perigoso. Num dos sítios onde trabalho um dos miúdos estuda num colégio que foi dos primeiros a fechar. Que eu saiba foi só uma medida de segurança, mas tenho receio. Agora não estou a trabalhar, todas as casas garantiram que me iam continuar a pagar e fizemos um acordo: se precisarem mesmo de mim eu vou, no meu carro, e pagam-me a gasolina. Só recuso se houver alguém doente.
Margarida, 41 anos DELEGADA DE INFORMAÇÃO MÉDICA
h “‘O que estou aqui a fazer?’ Foi o que pensei quando aquela médica, numa das últimas visitas a um centro de saúde, me disse que tinha diagnosticado uma pessoa com pneumonia. Não sei se estou infetada e estou preocupada por não saber o que me espera. Sou delegada de informação médica e visito diariamente centros de saúde de Lisboa e da Margem Sul do Tejo. Só recebi indicações para suspender estes contactos na quarta-feira, dia 11, à noite. Mas, nessa semana, aquela em que os casos de coronavírus começaram a escalar, ainda fiz 30 visitas. Os médicos estavam desconfortáveis, e eu também. Perguntavam-me o que estava ali a fazer, não nos cumprimentávamos – desde o início da semana que os apertos de mão ou os beijos eram impensáveis –, e mantinham uma distância de segurança de mais de um metro. Sentiam-se expostos. Só dia 11, à noite, recebemos um email da farmacêutica para ficarmos a trabalhar em casa. Mas a decisão devia ter acontecido mais cedo. Vou ficar de quarentena 15 dias porque não sei se estou doente. Nós podemos ser veículos, mesmo sem sintomas, e isso é uma preocupação grande. Até porque os meus pais têm mais de 70 anos, o meu pai também é diabético, e tenho uma sobrinha de 9 anos. Não quero que lhes aconteça nada.” W