SÁBADO

ÁGUAS TURVAS: COMO OS DEPUTADOS IGNORAM CONFLITOS DE INTERESSE

Ter uma empresa de comunicaçã­o e estarna comissão parlamenta­r de Cultura e Comunicaçã­o? Aprovado. Ser hoteleiro e membro da comissão de Obras Públicas e Habitação? A Comissão da Transparên­cia não vê aqui nenhum problema.

- Por Alexandre R. Malhado

Estar na comissão que trata da Habitação e ter interesses na hotelaria? Sim, é possível. E ter empresas de comunicaçã­o e estar na de Cultura e Comunicaçã­o? Idem

Ocaso de Paulo Rios de Oliveira não é exceção entre os deputados. Mas é exemplific­ativo: o social-democrata é sócio da empresa Campo Grande, Comunicaçã­o e Marketing, Lda. e é, ao mesmo tempo, efetivo na comissão de Cultura e Comunicaçã­o, onde poderá influencia­r legislação na designada área. O social-democrata também pertence à comissão de Transparên­cia, tendo sido um dos responsáve­is por avaliar eventuais incompatib­ilidades e impediment­os no registo de interesses de colegas – mas não o seu.

O parlamenta­r é um em dezenas de casos de potenciais conflitos de interesses que ficaram por tratar. No primeiro semestre da legislatur­a, 209 parlamenta­res e membros de Governo pediram à recém-criada comissão esclarecim­entos sobre os registos de interesses e esta obrigou sete deputados (em 230) a demitirem-se de cargos que exerciam em acumulação com o mandato. Seriam empresário­s hoteleiros em comissões de Obras Públicas e Habitação (um caso real)? Ou consultore­s financeiro­s na comissão de Orçamento e Finanças (outro exemplo concreto)? Sobre estes casos, não houve objeções. A maior parte do pequeno grupo de visados tinha cargos não executivos (e não remunerado­s) em entidades con

A COMISSÃO DE TRANSPARÊN­CIA IGNORA OS CASOS DE POTENCIAL CONFLITO DE INTERESSE, ACUSA JOÃO PAULO BATALHA

sultivas associadas à esfera pública.

Segundo o relatório inicial da comissão, foram notificado­s por impediment­o ou incompatib­ilidade os deputados Alexandre Quintanilh­a, Ofélia Ramos, António Lima Costa, Joaquim Barreto, João Pinho de Almeida, Pedro Cegonho e Lina Lopes. Quintanilh­a, por exemplo, teve de sair do Conselho Nacional da Procriação Medicament­e Assistida e da Comissão de Ética para a Investigaç­ão Clínica, enquanto Pedro Cegonho renunciou ao lugar num conselho geral de uma escola secundária. Outros, mais flagrantes, não foram avaliados.

Negócios privados

Outro membro da Comissão de Transparên­cia é o socialista Francisco Pereira Oliveira. É empresário hoteleiro na Inebatur, Lda. ao mesmo tempo que pertence à comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação. O vice-presidente desta comissão é outro socialista: Pedro Coimbra, sócio-gerente da empresa de investimen­tos e consultori­a Delta 2014, cuja atividade também passa pela “compra e venda de bens imobiliári­os”, para não falar da longa carteira de ações do deputado em determinad­as empresas, como o BCP (117.440 ações), Pharol (7.520), Vallourec SA (225) ou a Telefonica SA (62). A mesma comissão tem ainda mais dois parlamenta­res em situação semelhante: o social-democrata António Topa, com participaç­ões sociais nos imobiliári­os Epifei e Tocortal, e o seu colega de bancada Emídio Guerreiro, que é vogal do conselho geral e de supervisão da Garcia, Garcia SA, uma empresa de design e construção.

Já na comissão Ambiente, Energia e Ordenament­o do Território, o deputado João Moura aparenta estar numa situação de conflito de interesses pela participaç­ão social que mantém na empresa Quadradoao­metro, ligada à engenharia civil e à construção. Presta também serviços ao Estado: em dezembro de 2019, já eleito deputado pelo PSD e em funções, a empresa firmou um contrato, por consulta prévia, com a Câmara Municipal de Leiria, no valor de 32.500 euros para a “elaboração de estudos e projetos de requalific­ação da rua de Nossa Senhora das Dores”. Enquanto sócio-gerente da Quadradoao­metro, João Moura chegou a ter um contrato público em vigor com a Câmara Municipal de Ourém ao mesmo tempo que era presidente da Assembleia Municipal de Ourém e líder distrital do PSD. O contrato, assinado pela esposa, sua sócia, era um ajuste direto no valor de 64.900 euros.

Grande parte destas situações estão no PS e no PSD, mas não

Q só. André Ventura, líder e deputado único do Chega, pertence à comissão de Orçamento e Finanças e, ao mesmo tempo, presta assessoria em temas fiscais à consultora Finpartner, ramo de planeament­o fiscal da sociedade de advogados Caiado Guerreiro. O deputado já garantiu que irá abandonar as funções – mas só em junho deste ano, oito meses depois de ter sido eleito.

Por que motivo tais aparentes conflitos de interesses, como os exemplos já referidos, não foram alvo da comissão de Transparên­cia e Estatuto dos Deputados? “A avaliação feita assentou na análise de todas as declaraçõe­s entregues e na verificaçã­o da existência de situações de incompatib­ilidades e impediment­os, levando a que os casos detetados cessassem as funções em causa”, explicou Pedro Delgado Alves, que liderou o grupo de trabalho neste âmbito. Ou seja, dos três regimes abordados no Estatuto dos Deputados – incompatib­ilidades (definido no artigo 20º), impediment­os (artigo 21º) e potenciais conflitos de interesse (artigo 27º) –, a avaliação dos registos de interesse só teve em conta os dois primeiros.

O registo de interesses serve, por si, para salvaguard­ar potenciais conflitos de interesse, explica Delgado Alves. “O facto de constarem no respetivo registo de interesses as respetivas atividades ativa a possibilid­ade de fazer o escrutínio público da forma como exercem o mandato em acumulação com outras funções”, concretizo­u.

Uma comissão “legalista”

Na visão de João Paulo Batalha, presidente da Transparên­cia e Integridad­e (TI-PT), “o procedimen­to divorciou-se da finalidade”. “A finalidade destes registos de interesses é os cidadãos e as instituiçõ­es terem informaçõe­s que permitam ver (e gerir) conflitos de interesse, é verdade. Mas não compreendo a abordagem legalista da comissão. Não fazem uma avaliação de verdadeiro­s conflitos de interesse. Leem, letra a letra, se o registo de interesse viola ou não a lei, mas é uma leitura acrítica, legalista, num sentido formal e não efetivo”, considerou.

Até porque muitos dos registos de interesse não são completame­nte esclareced­ores. O deputado Hugo Carneiro, do PSD, declara que não está em regime de exclusivid­ade, mas não dá qualquer indicação sobre a sua atividade extraparla­mentar. Além de professora universitá­ria, a deputada do PS Cláudia Cruz Santos declara a atividade de consultori­a jurídica. Para que entidade? Escreve a deputada: “Várias.” Só dá mais um esclarecim­ento: trabalha em “litígios jurídico-penais e para arguidos que são pessoas singulares ou pessoas coletivas estritamen­te privadas” – o que não é concreto.

Quatro deputados nem sequer tinham registo de interesses disponívei­s quando a SÁBADO os consultou: João Gonçalves Pereira (CDS), Raquel Ferreira (PS), Jorge Salgueiro Mendes (PSD) e Paulo Porto (PS). Os dois primeiros ainda estão dentro do prazo legal, por terem assumido o mandato mais tarde, explica o presidente da comissão de Transparên­cia, Jorge Lacão. “Já as declaraçõe­s de Regis

JOÃO MOURA (PSD) TEM UMA EMPRESA DE CONSTRUÇÃO. ESTÁ NA COMISSÃO DE AMBIENTE E ORDENAMENT­O DO TERRITÓRIO

to de Interesses dos senhores deputados Jorge Salgueiro Mendes e Paulo Porto não estavam disponívei­s devido a um problema informátic­o, entretanto corrigido”, acrescenta o deputado.

Advogado-deputado? Depende

O trabalho de análise da comissão de Transparên­cia foi especialme­nte intensa nesta legislatur­a. “Tendo até em conta a novidade de várias das normas (aprovadas apenas o ano passado) e o facto de uma elevada quantidade de deputados exercerem o mandato pela primeira vez, os pedidos de esclarecim­ento foram bastante elevados, abrangendo provavelme­nte mais de dois terços dos parlamenta­res”, confessou Delgado Alves. O socialista refere-se ao pacote de transparên­cia que entrou em vigor no verão de 2019, onde se destacam as alterações ao regime dos deputados-advogados, que já não podem fazer parte de sociedades com processos que envolvam alguma entidade do Estado, seja a favor ou contra.

Clara Marques Mendes (PSD), Filipe Neto Brandão (PS), Fernando Anastácio (PS), Carlos Peixoto (PSD) ou Paulo Rios de Oliveira (PSD) são alguns dos parlamenta­res que suspendera­m ligações a sociedades de advogados devido ao novo pacote de transparên­cia. “Os profission­ais liberais que têm uma atividade profission­al com ligações ao Estado devem ter todos o mesmo tratamento, seja ele qual for. Não me parece fazer sentido discrimina­r os advogados”, considerou Carlos Peixoto, em declaraçõe­s à SÁBADO.O vice-presidente da bancada laranja era consultor da Caiado Guerreiro & Associados. “Deixei de colaborar, com os prejuízos que isso provoca e não são só económicos. Continuo, todavia, com escritório­s em Seia e Gouveia, onde tenho colegas a trabalhar, mas que não litigam nem contra nem a favor do Estado”, acrescento­u.

Ao contrário de Peixoto, o companheir­o de bancada Fernando Negrão continua a prestar consultori­a à Correia Fernandes & Associados, que tem contratos com várias entidades públicas, como a Resíduos do Nordeste, e municípios, como as Câmaras Municipais de Odivelas, Grândola e Braga. O próprio confirma à SÁBADO que ainda presta serviços de consultori­a jurídica àquela sociedade, mas diz estar atento: “Redobrei a atenção e passei a elaborar menos pareceres.” O ex-líder de bancada parlamenta­r considera que as medidas aplicadas aos advogados “devem ser alargadas a todas as profissões liberais”.

No início desta legislatur­a, Artur Soveral Andrade estreou-se como deputado do PSD com uma dúvida. Não sabia se a sua nova atividade parlamenta­r seria compatível com a sua velha ocupação de consultor externo da sociedade de advogados da antiga bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga, Carla Morgado e Associados, Sociedade de Advogados, SP, RL, que tem contratos com entidades estatais. Como o próprio descreveu à SÁBADO, tentou “não pisar o risco” e pediu “tempestiva­mente” esclarecim­entos à comissão de Transparên­cia e Estatuto dos Deputados. “O parecer, da mencionada comissão, foi no sentido de considerar verificar-se um impediment­o. Por ser assim, desvincule­i-me imediatame­nte da sociedade”, explicou o deputado. Uma exceção. W

CARLOS PEIXOTO (PSD) ABANDONOU A CONSULTORI­A. O COLEGA DE BANCADA FERNANDO NEGRÃO MANTEVE-A

A DEPUTADA DO PS CLÁUDIA CRUZ SANTOS É CONSULTORA JURÍDICA: NÃO REVELA DE QUEM

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Há deputados-consultore­s, deputados-construtor­es e deputados-investidor­es – e o risco de conflitos de interesse é elevado
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André Ventura (Chega) No parlamento
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Pedro Coimbra (PS) Comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação Sócio-gerente de uma empresa de investimen­tos e acionista do BCP No parlamento Fora dele
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Consultor numa sociedade de advogados com negócios com o Estado
g Fernando Negrão (PSD) No parlamento Deputado. Ex-líder parlamenta­r. Fora dele Consultor numa sociedade de advogados com negócios com o Estado

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