ÁGUAS TURVAS: COMO OS DEPUTADOS IGNORAM CONFLITOS DE INTERESSE
Ter uma empresa de comunicação e estarna comissão parlamentar de Cultura e Comunicação? Aprovado. Ser hoteleiro e membro da comissão de Obras Públicas e Habitação? A Comissão da Transparência não vê aqui nenhum problema.
Estar na comissão que trata da Habitação e ter interesses na hotelaria? Sim, é possível. E ter empresas de comunicação e estar na de Cultura e Comunicação? Idem
Ocaso de Paulo Rios de Oliveira não é exceção entre os deputados. Mas é exemplificativo: o social-democrata é sócio da empresa Campo Grande, Comunicação e Marketing, Lda. e é, ao mesmo tempo, efetivo na comissão de Cultura e Comunicação, onde poderá influenciar legislação na designada área. O social-democrata também pertence à comissão de Transparência, tendo sido um dos responsáveis por avaliar eventuais incompatibilidades e impedimentos no registo de interesses de colegas – mas não o seu.
O parlamentar é um em dezenas de casos de potenciais conflitos de interesses que ficaram por tratar. No primeiro semestre da legislatura, 209 parlamentares e membros de Governo pediram à recém-criada comissão esclarecimentos sobre os registos de interesses e esta obrigou sete deputados (em 230) a demitirem-se de cargos que exerciam em acumulação com o mandato. Seriam empresários hoteleiros em comissões de Obras Públicas e Habitação (um caso real)? Ou consultores financeiros na comissão de Orçamento e Finanças (outro exemplo concreto)? Sobre estes casos, não houve objeções. A maior parte do pequeno grupo de visados tinha cargos não executivos (e não remunerados) em entidades con
A COMISSÃO DE TRANSPARÊNCIA IGNORA OS CASOS DE POTENCIAL CONFLITO DE INTERESSE, ACUSA JOÃO PAULO BATALHA
sultivas associadas à esfera pública.
Segundo o relatório inicial da comissão, foram notificados por impedimento ou incompatibilidade os deputados Alexandre Quintanilha, Ofélia Ramos, António Lima Costa, Joaquim Barreto, João Pinho de Almeida, Pedro Cegonho e Lina Lopes. Quintanilha, por exemplo, teve de sair do Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida e da Comissão de Ética para a Investigação Clínica, enquanto Pedro Cegonho renunciou ao lugar num conselho geral de uma escola secundária. Outros, mais flagrantes, não foram avaliados.
Negócios privados
Outro membro da Comissão de Transparência é o socialista Francisco Pereira Oliveira. É empresário hoteleiro na Inebatur, Lda. ao mesmo tempo que pertence à comissão de Economia, Inovação, Obras Públicas e Habitação. O vice-presidente desta comissão é outro socialista: Pedro Coimbra, sócio-gerente da empresa de investimentos e consultoria Delta 2014, cuja atividade também passa pela “compra e venda de bens imobiliários”, para não falar da longa carteira de ações do deputado em determinadas empresas, como o BCP (117.440 ações), Pharol (7.520), Vallourec SA (225) ou a Telefonica SA (62). A mesma comissão tem ainda mais dois parlamentares em situação semelhante: o social-democrata António Topa, com participações sociais nos imobiliários Epifei e Tocortal, e o seu colega de bancada Emídio Guerreiro, que é vogal do conselho geral e de supervisão da Garcia, Garcia SA, uma empresa de design e construção.
Já na comissão Ambiente, Energia e Ordenamento do Território, o deputado João Moura aparenta estar numa situação de conflito de interesses pela participação social que mantém na empresa Quadradoaometro, ligada à engenharia civil e à construção. Presta também serviços ao Estado: em dezembro de 2019, já eleito deputado pelo PSD e em funções, a empresa firmou um contrato, por consulta prévia, com a Câmara Municipal de Leiria, no valor de 32.500 euros para a “elaboração de estudos e projetos de requalificação da rua de Nossa Senhora das Dores”. Enquanto sócio-gerente da Quadradoaometro, João Moura chegou a ter um contrato público em vigor com a Câmara Municipal de Ourém ao mesmo tempo que era presidente da Assembleia Municipal de Ourém e líder distrital do PSD. O contrato, assinado pela esposa, sua sócia, era um ajuste direto no valor de 64.900 euros.
Grande parte destas situações estão no PS e no PSD, mas não
Q só. André Ventura, líder e deputado único do Chega, pertence à comissão de Orçamento e Finanças e, ao mesmo tempo, presta assessoria em temas fiscais à consultora Finpartner, ramo de planeamento fiscal da sociedade de advogados Caiado Guerreiro. O deputado já garantiu que irá abandonar as funções – mas só em junho deste ano, oito meses depois de ter sido eleito.
Por que motivo tais aparentes conflitos de interesses, como os exemplos já referidos, não foram alvo da comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados? “A avaliação feita assentou na análise de todas as declarações entregues e na verificação da existência de situações de incompatibilidades e impedimentos, levando a que os casos detetados cessassem as funções em causa”, explicou Pedro Delgado Alves, que liderou o grupo de trabalho neste âmbito. Ou seja, dos três regimes abordados no Estatuto dos Deputados – incompatibilidades (definido no artigo 20º), impedimentos (artigo 21º) e potenciais conflitos de interesse (artigo 27º) –, a avaliação dos registos de interesse só teve em conta os dois primeiros.
O registo de interesses serve, por si, para salvaguardar potenciais conflitos de interesse, explica Delgado Alves. “O facto de constarem no respetivo registo de interesses as respetivas atividades ativa a possibilidade de fazer o escrutínio público da forma como exercem o mandato em acumulação com outras funções”, concretizou.
Uma comissão “legalista”
Na visão de João Paulo Batalha, presidente da Transparência e Integridade (TI-PT), “o procedimento divorciou-se da finalidade”. “A finalidade destes registos de interesses é os cidadãos e as instituições terem informações que permitam ver (e gerir) conflitos de interesse, é verdade. Mas não compreendo a abordagem legalista da comissão. Não fazem uma avaliação de verdadeiros conflitos de interesse. Leem, letra a letra, se o registo de interesse viola ou não a lei, mas é uma leitura acrítica, legalista, num sentido formal e não efetivo”, considerou.
Até porque muitos dos registos de interesse não são completamente esclarecedores. O deputado Hugo Carneiro, do PSD, declara que não está em regime de exclusividade, mas não dá qualquer indicação sobre a sua atividade extraparlamentar. Além de professora universitária, a deputada do PS Cláudia Cruz Santos declara a atividade de consultoria jurídica. Para que entidade? Escreve a deputada: “Várias.” Só dá mais um esclarecimento: trabalha em “litígios jurídico-penais e para arguidos que são pessoas singulares ou pessoas coletivas estritamente privadas” – o que não é concreto.
Quatro deputados nem sequer tinham registo de interesses disponíveis quando a SÁBADO os consultou: João Gonçalves Pereira (CDS), Raquel Ferreira (PS), Jorge Salgueiro Mendes (PSD) e Paulo Porto (PS). Os dois primeiros ainda estão dentro do prazo legal, por terem assumido o mandato mais tarde, explica o presidente da comissão de Transparência, Jorge Lacão. “Já as declarações de Regis
JOÃO MOURA (PSD) TEM UMA EMPRESA DE CONSTRUÇÃO. ESTÁ NA COMISSÃO DE AMBIENTE E ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO
to de Interesses dos senhores deputados Jorge Salgueiro Mendes e Paulo Porto não estavam disponíveis devido a um problema informático, entretanto corrigido”, acrescenta o deputado.
Advogado-deputado? Depende
O trabalho de análise da comissão de Transparência foi especialmente intensa nesta legislatura. “Tendo até em conta a novidade de várias das normas (aprovadas apenas o ano passado) e o facto de uma elevada quantidade de deputados exercerem o mandato pela primeira vez, os pedidos de esclarecimento foram bastante elevados, abrangendo provavelmente mais de dois terços dos parlamentares”, confessou Delgado Alves. O socialista refere-se ao pacote de transparência que entrou em vigor no verão de 2019, onde se destacam as alterações ao regime dos deputados-advogados, que já não podem fazer parte de sociedades com processos que envolvam alguma entidade do Estado, seja a favor ou contra.
Clara Marques Mendes (PSD), Filipe Neto Brandão (PS), Fernando Anastácio (PS), Carlos Peixoto (PSD) ou Paulo Rios de Oliveira (PSD) são alguns dos parlamentares que suspenderam ligações a sociedades de advogados devido ao novo pacote de transparência. “Os profissionais liberais que têm uma atividade profissional com ligações ao Estado devem ter todos o mesmo tratamento, seja ele qual for. Não me parece fazer sentido discriminar os advogados”, considerou Carlos Peixoto, em declarações à SÁBADO.O vice-presidente da bancada laranja era consultor da Caiado Guerreiro & Associados. “Deixei de colaborar, com os prejuízos que isso provoca e não são só económicos. Continuo, todavia, com escritórios em Seia e Gouveia, onde tenho colegas a trabalhar, mas que não litigam nem contra nem a favor do Estado”, acrescentou.
Ao contrário de Peixoto, o companheiro de bancada Fernando Negrão continua a prestar consultoria à Correia Fernandes & Associados, que tem contratos com várias entidades públicas, como a Resíduos do Nordeste, e municípios, como as Câmaras Municipais de Odivelas, Grândola e Braga. O próprio confirma à SÁBADO que ainda presta serviços de consultoria jurídica àquela sociedade, mas diz estar atento: “Redobrei a atenção e passei a elaborar menos pareceres.” O ex-líder de bancada parlamentar considera que as medidas aplicadas aos advogados “devem ser alargadas a todas as profissões liberais”.
No início desta legislatura, Artur Soveral Andrade estreou-se como deputado do PSD com uma dúvida. Não sabia se a sua nova atividade parlamentar seria compatível com a sua velha ocupação de consultor externo da sociedade de advogados da antiga bastonária da Ordem dos Advogados, Elina Fraga, Carla Morgado e Associados, Sociedade de Advogados, SP, RL, que tem contratos com entidades estatais. Como o próprio descreveu à SÁBADO, tentou “não pisar o risco” e pediu “tempestivamente” esclarecimentos à comissão de Transparência e Estatuto dos Deputados. “O parecer, da mencionada comissão, foi no sentido de considerar verificar-se um impedimento. Por ser assim, desvinculei-me imediatamente da sociedade”, explicou o deputado. Uma exceção. W
CARLOS PEIXOTO (PSD) ABANDONOU A CONSULTORIA. O COLEGA DE BANCADA FERNANDO NEGRÃO MANTEVE-A
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