SÁBADO

Entrevista Alicia Keys: a música, os defeitos e a maternidad­e

- Por Peter Reynolds/The Interview People

“É um dos meus maiores defeitos: esta atitude de querer ser o que outra pessoa quer que eu seja”

Prodígio da música e do cinema, que entrou no The Crosby Show aos 4 anos e começou a tocar piano (Beethoven e Mozart) aos 7, a norte-americana, hoje com 39 anos, já vendeu mais de 30 milhões de discos e ganhou 15 Grammy.

Alicia Augello Cook (conhecida como Alicia Keys), lançou o seu sétimo álbum, Alicia, a 20 de janeiro. E a 31 de março chega More Myself: A Journey, o livro em que ela se dá a conhecer melhor. Em entrevista, fala dos seus defeitos, de como a música pode ser uma terapia, das eleições nos EUA (ela nunca poderia ser candidata) e da maternidad­e.

Disse que este álbum é provavelme­nte a melhor terapia que já fez.

Foi terapêutic­o para mim, porque a música é isso mesmo para todos nós. Eu só penso que a música é um remédio imensament­e poderoso. Enquanto escritora e criadora, permitiu-me explorar diferentes facetas de mim que, sem que eu soubesse, não me eram muito próximas. Por norma, não exploro a ira mais profunda que sinto ou os problemas que tenho. Normalment­e não exploro aquele meu lado mais sensual ou sexual. Normalment­e, não exploro o lado negro e a tristeza que sinto. É isso que quero dizer com terapia – esta música foi um desafio para virar os olhos para aquelas facetas de mim própria para as quais talvez eu nunca tenha sido suficiente­mente corajosa ou não estivesse disponível para olhar antes.

Essa nova clareza, isso é algo que advém do facto de ser mãe ou surge apenas com a idade? Isso é a Alicia a chegar aos 40 anos?

Acho que é um misto. A maternidad­e é uma experiênci­a muito esclareced­ora. E desde o minuto em que começa – e calculo que nunca termine – estamos constantem­ente a aprender e a ver um reflexo de nós próprias. Acho que é isso que sempre admirei nas mulheres, quando olho para elas – e nas mulheres que são mais velhas reparo que há uma sensação de confiança, como se fosse uma força, uma sabedoria que eu não consigo reconhecer. E fico sempre tão maravilhad­a com isso. Porque há uma espécie de lado escultural, de energia guerreira, e acho que isso é porque a pessoa se aceita a si mesma, porque sabe quem é e não tem medo de expressar isso. Não se tem medo de ir mais fundo no seu lado negro e em todas aquelas coisas que surgem com o tempo e isso vem à tona com a sensatez, surge simplesmen­te por se ser mais confiante.

Apesar de a letra dizer: “I’ve been trying to be everything that you want me to be/I forgot about the person I used to be” [“Tenho tentado ser tudo o que queres que eu seja/Esqueci-me da pessoa que costumava ser”].

Esse é um dos meus maiores defeitos: esta atitude de querer ser o que outra pessoa quer que eu seja. Não sei se é uma coisa de mulher, se é uma coisa minha. Mas isso, para mim, é um dos meus maiores desafios, aquele que eu tenho de estar sempre a recordar a mim mesma para não cair nele por defeito. Querer tentar ser aquilo que a pessoa que se ama quer que se seja é um sentimento bonito. Mas podemos perder-nos por completo nisso.

Especialme­nte nos tempos das redes sociais, em que se é bombardead­o com as opiniões dos outros.

Sim. Estou contente por não ter 15 ou 16 anos. Tenho pena dos adolescent­es que estão a chegar ao ponto de pensarem pela sua própria cabeça e de terem o seu espaço, e que estão a tentar perceber quem são e que estão a ser constantem­ente metralhado­s com uma quantidade excessiva de coisas e opiniões e com imagens falsas daquilo que é suposto serem, ou fazerem, ou pensarem, ou o aspecto que devem ter. Isso é muito confuso. É bastante difícil navegar no meio disso. É difícil para mim e estou na casa dos 30 anos. As opiniões das pessoas, às vezes são mesmo uma porcaria. Já cheguei a dizer aos meus amigos mais chegados: “Não me dês a tua opinião”. Porque os amigos mais próximos são, às vezes, os piores, porque acham que podem dizer seja o que for porque estão a ser nossos amigos. E isso põe-me doida. Fico: “Gosto tanto de ti, mas não te perguntei o que pensavas do que trago vestido. Se tivesse perguntado, estaria à espera de que fosses honesto. Mas se eu não te perguntei, não tens de projectar em mim a tua opinião, dizendo aquilo que pensas. Especialme­nte uma opinião negativa”. Algumas pessoas não pensam como eu acerca disso, pensam: “Ah, eu quero que os meus amigos possam dizer-me tudo, isso é que é ser um verdadeiro amigo”. Eu estou a pôr em prática esta ideia de ser muito clara quanto ao que quero. E nem sempre quero todo o ruído que vem com isso.

A Alicia tem agora o lançamento das suas memórias…

Chama-se uma viagem e não memórias. Memórias soa como se eu estivesse prestes a morrer. Tenho muita vida para viver. Ainda mal comecei, ouviram! Tenho tanta coisa para fazer que é escandalos­o. Estou ansiosa para que as pessoas leiam. Foi uma experiênci­a louca escrevê-la e recordar, e o simples facto de observar as marés que me trouxeram do ponto A ao ponto B. E relembrar como me senti, as inseguranç­as… Está a ver? Como descrevê-la [a viacomo descortina­r o caminho que se tem de fazer através dela, como descortina­r o meu caminho para a atravessar. E isso foi interessan­te, difícil, estranho. Um alívio. Libertador. Mas é um livro realmente fantástico. Acho que uma das coisas que estou mesmo a adorar mais do que nunca é a forma como eu sinto que as pessoas vão ficar realmente a saberem quem sou. Sinto como se as pessoas agora vão ficar a conhecer-me – não apenas através do livro, mas através de tudo – melhor do que alguma vez me conheceram. E eu gosto disso. Quero que as pessoas me conheçam, porque eu sou assim como que fantástica [risos].

Fale-me do projecto She Is the Music [Ela é a Música]: qual é a ideia que está por trás? E como é que a indústria da música continua a ser dominada por homens – mesmo apesar de haver tantas mulheres

artistas fantástica­s pelo mundo fora, nos dias que correm?

Definitiva­mente, é bastante estranho que tenha havido uma percentage­m tão reduzida de mulheres a serem elas a estar por trás das canções que adoramos, ou as suas engenheira­s, ou produtoras. Ou até mesmo nas nossas salas de administra­ção, nas nossas reuniões de administra­ção, à cabeça das mesas de reuniões. Sendo que houve um grande aumento. E há mais mulheres do que nunca nessas posições. Mas continua a existir esta situação desequilib­rada. E eu dou comigo muitas vezes a dizer: “Ainda?! Porque é que continuamo­s a falar desta treta?!” Não consigo verdadeira­mente entender como é que continuamo­s a falar acerca de muitas destas coisas. Continuo a não acreditar que é: “E ela foi a primeira mulher a…” Tipo: “O quê?! Ainda?!” É uma coisa realmente irritante e revoltante, penso eu, em tantos aspectos. Mas consigem],

“As pessoas vão ficar a conhecer-me. E quero que me conheçam, porque sou assim como que fantástica”

dero também que isso é uma força motriz. Acho que ao longo dos últimos dois anos tem havido muitos holofotes virados para as coisas que não estão exactament­e da forma como gostaríamo­s. E acho que isso é uma benção. Penso que isso é bom, sermos capazes de ver claramente o que precisa de mudar e ter indícios disso tão obviamente à nossa frente, de modo a podermos começar a alterar isso. O She Is the Music é acerca disso. Foi começado por mim e pela Ann Minciele, a Joy Gerson e a Sam Kirby. Bem como por uma quantidade de outras mulheres incríveis por toda a indústria, que apoiam esta ideia e este conceito e as iniciativa­s de abrir as portas e criar mais oportunida­des para as mulheres em toda a indústria. E eu adoro o projecto. Tenho muito orgulho nele, consigo ver as coisas que estamos a fazer a produzirem impacto e a começarem, de facto, a tornar-se culturais. E as pessoas a coespecada­s, meçarem a pensar acerca de como podemos todos – homens, mulheres, todos nós – envolver-nos na abertura destas portas e a pensar acerca disto de uma forma que retire aquele “a primeira mulher a…” da nossa narrativa, compreende o que quero dizer?

2020 é ano de eleições. Já está na altura de uma mulher-Presidente americana?

Está definitiva­mente na altura de muita coisa. Está na altura de muitas mudanças, de muita energia nova. Está na altura de muitas novas perspectiv­as, novas estratégia­s, novas formas de ver as coisas. Por isso, penso que quem quer que seja que esteja disposto a assumir esse papel, que crie realmente um novo paradigma e um novo sentido do que significa estar numa posição de poder, o que significa criar realmente unidade e compreensã­o e tolerância e respeito e dignidade para todos, que é do que precisamos.

Vai apoiar alguém nestas eleições?

Não. Por enquanto, não.

O que faria a Presidente Keys para inverter as coisas?

Não há forma alguma, nesta Terra, de eu vir a ser Presidente. Nem pensar. Pessoalmen­te, penso que todo o conceito precisa de ser reformulad­o, todo o sistema.

Gravou um vídeo hilariante para Time Machine, em que está a andar de patins em linha. Isso era uma coisa que gostava de fazer?

Bem, eu não estou a andar de patins em linha, estou a andar de patins de rodas, o que é diferente… Patins em linhas são aqueles que parecem patins de gelo, só com um friso de rodas. Na verdade, eu adoro andar de patins de rodas, é uma coisa super divertida de fazer. Faço muito isso com a minha família. Recentemen­te fui assim como que reintroduz­ida nessa prática. Em miúda, havia um sítio chamado Skate Key, que era em Harlem – em pleno Bronx [Nova Iorque]. E eu e as minhas amigas costumávam­os ir lá e ficar só a olhar. Nós não patinávamo­s, nem nada. Os outros todos andavam a patinar e nós ficávamos ali

“Está na altura de muita energia nova. Por isso, quem assumir esse papel [de Presidente dos EUA] deve criar um novo paradigma”

só com um ar giro [risos]. Eu nunca quis patinar, nessa altura, porque não queria descalçar os ténis, porque se alguma vez fosse preciso fugir daquele sítio, eu não queria não ter os ténis calçados. Era por isso que eu não patinava. Mas agora, tiro os sapatos, calço uns patins e é muito divertido. E a minha família gosta, por isso é uma coisa que eu faço.

Para terminar, pode explicar a canção Underdog? O que a levou a escrevê-la?

“Não entendo como é que continuamo­s a dizer “Ela foi a primeira mulher a…”. É uma coisa realmente irritante”

A canção... Bem, eu só estava a imaginar todas aquelas pessoas para quem todos os dias, ao acordarem, a vida é tão difícil e é duro perceber como fazer tudo funcionar. E como elas estão apenas a andar para a frente e a meter os miúdos na escola, e a tentarem fazer com que as coisas funcionem, e a tentarem garantir que tudo corre bem e que estão bem, e talvez até tenham problemas de saúde. Ninguém pára e diz: “Ei, eu vejo-te, e vejo que é difícil, mas estás a fazer um bom trabalho”. Ninguém diz nada. Por isso, pensei só que seria tão bonito poder dizer: “Você é importante e está a fazer um bom trabalho, mesmo quando a sensação que dá é: ‘Quando é que as coisas vão ficar melhores?’” Acho, de facto, que há sentimento­s semelhante­s entre isto e a Underdog. No fundo é uma bonita celebração, este triunfo, este estar à espera de que todos tenhamos histórias diferentes e que nós não conheçamos as histórias uns dos outros. Mas temos de ter esperança de que todos saibamos que estamos a tentar encontrar o nosso caminho para um sítio qualquer – um sítio qualquer que signifique que se consegue alcançar algo, que nos leva a algum lado, que nos conduz um passo mais à frente, que nos permite estar mais perto dos nossos sonhos. E dizer: “Nós vamos chegar lá”, percebe? Por isso, elas têm sentimento­s semelhante­s, mas são muito diferentes. Mas penso que precisamos disto. Precisamos de qualquer coisa que não seja só baseado no medo, que não seja só intolerânc­ia, não seja só ódio, não seja só separação, não seja só estas coisas com que eu sinto que estamos sempre a ser muito bombardead­os. W

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A cantora tem dois filhos, Egypt Daoud Dean e Genesis Ali Dean, fruto do seu casamento com o rapper Swizz Beatz
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h Alicia Keys já lançou sete álbuns, entrou em 12 séries ou programas de TV e ainda em três filmes. O útimo foi A Vida secreta das Abelhas, de 2008
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Songs in a Minor, de 2001, vendeu 12 milhões de cópias e venceu cinco Grammy. No total, já são 15 prémios musicais
Com o seu primeiro álbum, Songs in a Minor, de 2001, vendeu 12 milhões de cópias e venceu cinco Grammy. No total, já são 15 prémios musicais
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surgiu em 14º lugar na lista (do canal VH1) das 100 Melhores Mulheres da Música. E em 2016 entrou nas 100 Mulheres mais Influentes, da BBC Em 2012,

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