Gastronomia Maria Antónia Goes escreveu 37 livros sobre alimentação
Vive sozinha no palácio da Quinta dos Prazeres, no Alvito. É lá que arranja inspiração para os livros sobre gastronomia: 37, em 20 anos.
Éporventura a mais prolixa escritora portuguesa do século XXI. Nas últimas duas décadas publicou 37 livros, todos relacionados com a história e a antropologia da alimentação e da gastronomia. É na solidão da Quinta dos Prazeres, no Alvito, que Maria Antónia Goes, 76 anos, montou a sua “oficina de escrita e de sabores”, entre os tachos geometricamente dependurados na cozinha e as centenas de livros da biblioteca do palácio. “É neste meu cantinho que tudo acontece”, resume.
O “cantinho” de Maria Antónia Goes é somente a maior casa daquela vila alentejana. Uma mansão ao estilo austero da arquitetura rural do Sul do País, com mais de mil metros quadrados. Isto sem contar com as antigas “áreas de serviço”, adega, lagar, padaria, ferraria, abegoaria, estrebaria... Vive ali desde sempre. A casa foi mandada construir pelo seu avô, João da Silva Goes, que a inaugurou em setembro de 1924. “Era um homem de famílias pobres, de Baleizão, que os pais tinham mandado estudar para o seminário e que, posteriormente, se tornou rendeiro. Em 1906, numa visita a Évora, comprou na Livraria e Papelaria Nazareth um bilhete da lotaria espanhola, o El Gordo. Foi nesse dia que enriqueceu”, diz.
Uma sorte quase “tão grande” como a que se tem quando se entra na pequena saleta que a luz exterior dilata desproporcionalmente. As paredes estão forradas com antigas alfaias de cozinha em estanho, os móveis são de época, e ao centro está uma mesa coberta por um atoalhado de linho imaculado. A louça é Vista Alegre, os talheres de prata. Mas é de dentro de uma panela de ferro fundido que exala a maior riqueza do
MONTOU A SUA “OFICINA DE ESCRITA E DE SABORES”, ENTRE OS TACHOS E OS LIVROS DO PALÁCIO
quadro. Percebe-se de onde vem o vasto caudal informativo e a inspiração para aquela que a autora considera ser a sua “obra fundamental”,
A Cozinha Tradicional do Alentejo – A Memória dos Temperos.
O que vai ser o almoço?
Preparei um cozidinho de grãos. É um prato simples e, ao mesmo tempo, complexo. Ossos de porco, toucinho, linguiça, o grão, feijão-verde... A cozinha tradicional é de uma riqueza ímpar. Estes eram pratos que a minha mãe costumava fazer.
Dos pratos confecionados pela sua mãe, qual apreciava mais?
Todos! Da cozinha alentejana simples e diária, à mais requintada cozinha francesa. A minha mãe era filha de lavradores ricos de Cuba. Tinham cavalos, é verdade, boas espingardas de caça, um carro... mas só comiam o que a casa produzia. Ninguém se lembraria de comer morangos em novembro.
Qual é a receita da gastronomia alentejana que mais a preenche?
A açorda de alho! Isto sem desprimor para a sopa de tomate, o cozido de grãos, as cabeças de borrego assadas... Mas a açorda representa na perfeição a criatividade e o desenrascanço portugueses. Com umas ervinhas, um dente de alho, um pedaço de pão, água e uma tampinha de azeite faz-se uma refeição incomparável. Contudo, aqui que ninguém nos ouve, tenho de dizer que não gosto de alho. E também não gosto de azeitonas, nem de queijo. Quando faço açorda para mim, não ponho alho. Não conte a ninguém...
Fica só para nós. Mas se é certo que a gastronomia tradicional e as memórias caseiras são o cal
Q do em que fervilha a vasta obra de Maria Antónia Goes, o tempero final é dado pelas sucessivas viagens que tem realizado ao longo dos últimos anos. “Conheço o mundo inteiro”, assegura. Quando viaja visita mercados, produtores, compra livros... “A cozinha que mais me apaixona é a francesa. Conheço bem as qualidades e a paixão que os franceses têm pela cozinha. Produzi foie gras cá em Alvito e, neste momento, ando a instruir-me em como cultivar trufas. Vai ser uma surpresa”, diz.
Cheio de surpresas é também o seu primeiro livro, Descobrimentos e Gastronomia Portuguesa , que escreveu após uma visita com um casal francês à Exposição Mundial de Sevilha, em 1992. À porta do Pavilhão das Américas estava um canteiro com plantas vindas do outro lado do Atlântico nas descobertas. Surpreendeu-a que os seus amigos nada soubessem sobre a origem dos alimentos. “Foi aí que decidi escrever um livro, que levou oito anos a ser editado. A maior parte das pessoas ainda hoje nem sonha que a introdução do feijão na dieta europeia foi um dos grandes avanços dos descobrimentos.” Seguiram-se muitos outros.
Que livro lhe deu mais prazer escrever?
Brasil na Hora de Temperar. Entre 2000 e 2006 tive casa no Rio de Janeiro. Estudei muito sobre o Brasil e tenho pena que em Portugal se desconheça quase tudo sobre aquele país. Estudar as cozinhas de norte a sul, ver a origem dos pratos e quanto herdaram dos portugueses, conhecer o nosso papel na viagem das plantas...
Então, qual é a história mais gostosa que tem passada à mesa?
Certa vez fui convidada para jantar no Grémio Literário e, ao meu lado, estava uma senhora pseudofina que, ao ouvir o maître propor foie gras disse logo que não gostava de fígado. Aí, o marido elucidou-a: “Tu não gostas é de iscas.” A senhora lá deixou vir o foie gras que foi comendo sempre de boca ao lado e, quando
TEVE AGORA A IDEIA DE CONSTRUIR UMA RESIDÊNCIA PARA “160 VELHOS RICOS” NO ALVITO
chegou o chateaubriand à la crème, virou-se para mim e disse-me: “Isto lá em Almeirim é carne assada.”
Quando era miúda queria ser arquiteta. E foi. Ainda hoje lá está, na antiga sala dos brinquedos do palácio da Quinta dos Prazeres, a casinha de bonecas que inspirou o futuro profissional de Maria Antónia Goes. “Desde cedo que pendi para a arquitetura.” Mas para lá chegar teve de “gramar” o internato no Instituto de Odivelas (“odiava lá estar, de tal forma que nunca mais lá voltei”), os dias agitados da Faculdade de Belas-Artes (“um sítio que tinha fama de ser mal reputado”) e teve de superar uma tuberculose (“foi terrível, fiz alergia à estreptomicina”). Começou por trabalhar no gabinete do João que era filho do Marcello Caetano e ainda integrou o ateliê do pintor e arquiteto Nuno San-Payo. Exerceu por conta própria até há 10 anos, quando uma doença cancerígena a afastou dos projetos em definitivo. Ou melhor: quase em definitivo. Em janeiro último voltou a abrir atividade. “A ideia de construir uma espécie de residência aqui em Alvito para cerca de 160 velhos ricos. Mas tenho poucas esperanças: só vejo a autarquia a contrariar-me e sem se dar conta da importância que semelhante obra teria para a vila.”
São uma realidade tardia, os livros de culinária na vida da arquiteta que começou por fazer e por desmanchar casinhas de bonecas. E que aprendeu a ler com a avó, aos 4 anos de idade, na precisa saleta onde agora uma panela de cozido de grãos espalha pela atmosfera o seu aroma. Sobre a toalha branca, um caderno com cowboys desenhados na capa e, lá dentro, receitas inscritas numa caligrafia irrepreensível.
De quem são?
Fui eu que as escrevi aos 14 anos.
É o meu primeiro livro de cozinha. É curioso porque agora também estou a publicar livros com a minha sobrinha-neta Bárbara Janeira. Até tenho uma editora, a Coentros.Com, para editar os nossos livros. É de pequenino que se torce o pepino. W