Futebol O campeonato português nunca tinha parado. Nem com as guerras
Desde 1934, a bola nunca tinha parado nos campos nacionais – nem com as bombas e as balas de metralhadora da II Guerra Mundial, nem com a revolução do 25 de Abril de 1974. Mas agora apareceu um vírus mortal.
Qual é o momento-zénite do futebol português? Fácil, o golo de Éder à França, no Euro 2016. Qual é o campeonato de um país europeu que desde que começou, há 86 anos, nunca foi interrompido? É o português. Ou melhor… era. Até ao último fim de semana. Não tinha parado com a I Guerra Mundial (não existia, só se disputavam provas regionais); nem com a II (Salazar manteve-se neutro e Portugal escapou ao conflito); nem mesmo com a revolução do 25 de Abril.
É verdade, nada tinha perturbado o futebol em Portugal: nem bombas de 1,8 toneladas como as usadas para destruir cidades inteiras na Alemanha, Holanda e Inglaterra; nem balas de 7 centímetros como as das metralhadoras alemãs MG42, que contribuíram para o balanço de mais de 60 milhões de mortos no conflito de 1939-45. Foi preciso aparecer o coronavírus, um inimigo invisível a olho nu, com 10 milimícron de diâmetro (significa que 1 milhão cabe dentro de uma célula), para os estádios fecharem em Portugal – face à epidemia mundial, tanto a Liga como as associações distritais adiaram as competições por tempo indeterminado.
Se esta doença covid-19 é uma espécie de gripe (mas com uma taxa de mortalidade muito superior), na verdade já houve um Sporting-Benfica adiado por causa da doença. Aconteceu em março de 1917, quando o desafio da 6ª jornada do Campeonato de Lisboa foi sendo sucessivamente prorrogado, por acordo entre os dois clubes, até que o Sporting pudesse ter todos os atletas recuperados. Ficou 0-0 e o Benfica tornou-se campeão.
Na Europa, só as guerras pararam os campeonatos. Em Inglaterra, onde o futebol nasceu, quando eclodiu a I Guerra Mundial, a 28 de julho de 1914, quer a Taça (desde 1871) quer o campeonato (1888) já existiam há décadas. O conflito levou à suspensão das provas, que só iriam regressar em 1919. Cinco anos foi, aliás, o tempo que o Harrogate Town teve de esperar para poder fazer o seu primeiro jogo oficial. Fundado em 1914, ia disputar a Liga do Norte, mas em setembro desse ano a competição foi suspensa. Terminada a guerra, o Harrogate
Town foi refundado por Robert Ackrill Breare, estreando-se a 30 de agosto de 1919, ao vencer em casa o Horsforth, com um golo de Craven.
500 mortos no Batalhão do Futebol
Em 1914, existiam 5 mil futebolistas profissionais na Grã-Bretanha, tendo 2.000 ido para a guerra. A 6 de setembro desse ano, o escritor Arthur Conan Doyle (autor dos livros de Sherlock Holmes) fez um apelo aos jogadores para se voluntariarem, e criou-se o Batalhão do Futebol, liderado por Frank Buckley, do Derby County – estima-se que 500 membros tenham morrido. Também houve futebolistas de clubes portugueses na I Guerra, casos de Herculano Santos (Benfica), Stander (Sporting), Hamilton, Harrison, Floriano Pereira e Joaquim Vidal Pinheiro (FC Porto). Este último, que morreu na batalha de La Lys, era irmão de Alexandre
A SEGUIR AO 25 DE ABRIL, O FUTEBOLISTA DO SPORTING EXCLAMOU: “PUXA, VIAGENS DESTAS NÃO VÊM NA BÍBLIA!”
Vidal Pinheiro, que viria a dar o nome ao estádio do Salgueiros.
Ainda antes de a II Guerra Mundial interromper os campeonatos em países como Inglaterra, França, Itália, Alemanha ou Escócia, Espanha já tinha estado sem competições (1936-39) devido à Guerra Civil. Mas em 1937 disputou-se a Liga Mediterrânea, com oito clubes das regiões da Catalunha e do Levante, afetas ao lado republicano. Ia ter 12 equipas, mas três desistiram quando as cidades de onde eram originárias (Hércules, Murcia e Cartagena) foram bombardeadas pelas forças de Franco. O Barcelona foi o campeão (só perdeu com o Girona). Já em 1939, realizou-se a Taça dos Nacionalistas, com equipas da zona controlada pelos franquistas, que teve como vencedor o Sevilha.
Em Portugal, até à chegada do coronavírus nada tinha parado o futebol. Nem as guerras nem o 25 de Abril. Na véspera da revolução, disputou-se a 27ª jornada, e logo depois, a 28 de abril, houve uma eliminatória da Taça de Portugal. Pelo meio, registou-se uma situação caricata, com o Sporting, que dia 24 defrontou o Magdeburgo (segunda mão das meias-finais da Taça das Taças). Os leões tinham empatado 1-1 em Alvalade, e na RDA perderam 2-1 e foram eliminados.
A 25 de abril, às 4h30, a comitiva saiu de Magdeburgo e ao chegar ao posto fronteiriço de Berlim Ocidental soube pelos funcionários que tinha havido um golpe militar em Portugal. Seguiram de avião para Frankfurt, onde iam continuar para Lisboa, só que os voos estavam suspensos. A equipa voou então para Madrid, continuando de autocarro até Badajoz, já com rumores de que havia milhares de mortos e feridos. Aí, foram bloqueados, porque a fronteira estava fechada. Tiveram de pernoitar na cidade espanhola, mas não havia quartos para todos e muitos dormiram no autocarro. Já de manhã, o presidente João Rocha conseguiu autorização do Movimento das Forças Armadas para seguir até Lisboa, onde chegaram ao fim de 40 horas de viagem. Ao ver os soldados com cravos nas espingardas, o futebolista brasileiro Joaquim Rocha desabafou: “Puxa, viagens destas não vêm na Bíblia, não!”