ELA FOI PROIBIDA DE USAR MÁSCARA
Raquel é enfermeira de um hospital privado do Porto e está em casa, isolada na cozinha, para tentar evitar contaminar o marido e as duas filhas
Neste momento durmo, almoço e janto na cozinha. Vivo aqui para as minhas filhas ficarem com o resto da casa. Devia ter sido ao contrário: prevenir para não acontecer. Sou enfermeira, trabalho num hospital privado do Porto, mas estávamos proibidos de usar máscara com o argumento de que criava alarmismo. Não havia nada escrito, as direções não podem proibir um profissional de saúde quando é declarada uma pandemia. Foi uma primeira colega para casa, depois a segunda, a seguir eu – a primeira a fazer o teste –, e só aí cancelaram as consultas do hospital.
O importante agora é proteger os profissionais de saúde. Por cada um que fica doente criam-se dois problemas: há menos um profissional disponível e mais um infetado. Proteger é a melhor solução.
Não sei quem me infetou. Tivemos na consulta um estudante brasileiro que tinha estado em Barcelona e as colegas atenderam-no sem máscara. Também trabalhamos com um médico do São João que estava assintomático, mas infetado.
Uma colega foi para casa dia 10, a segunda a 13 (com febre e dores no corpo) e eu ainda trabalhei até ao fim da semana e tive contacto com doentes. Quando a primeira foi para casa, pus uma máscara e fui repreendida. Disse que era um problema de saúde pública, mas não quiseram saber. Até esconderam as máscaras. E a direção sabia o que se passava.
No domingo, dia 15, liguei para a SNS24 e esperei cinco horas até me atenderem. Ficaram com os meus dados e, na segunda, ligaram-me da Linha de Apoio ao Médico a dizer que tinha de fazer o teste. Na terça, às 7h, recebi uma chamada do Hospital de Santo António para me apresentar às 10h. Saí de casa com máscara, dei os meus dados na portaria e fiquei no carro. Um colega todo equipado veio buscar-me e deu-me um cobre-sapatos para entrar na unidade de covid-19. Fui colocada numa box sozinha, onde só havia um cadeirão, um aparelho para medir as tensões e o oxigénio, um estetoscópio e contentores para materiais contaminados. Esperei cinco horas até fazerem o teste: sem água,
O bicho não pode passar
Naquela unidade existiam entre 12 a 14 boxes, só ouvia pessoas tossirem e percebia que algumas não estavam bem. Havia pelo menos dois médicos e dois enfermeiros. Uma médica avaliou-me e o enfermeiro fez o teste. São duas zaragatoas: a primeira no nariz, a segunda na boca. Colocam, esfregam, põem no frasco e fecham. Demora um minuto. Deram-me uma folha com o número do hospital, alguma informação e agora ligam uma vez por dia a perguntar se apareceu alguma coisa nova. Até ontem não tinha sintomas, mas comecei a perder o olfato e o paladar.
Vivo num T2, temos duas casas de banho, uma só para mim. Cozinho de máscara, lavo bem tudo, a loiça a 70 e a roupa a 60 graus – embora o que mate o bicho seja o detergente. Passo as coisas diretamente ao meu marido a uma distância de um metro. Tivemos de explicar isto a duas crianças de 5 anos: que tenho um bicho e que quem se chegar a mim passa para este lado. Foram elas que me deram o colchão, cobertores e o urso de peluche para não ficar sozinha. Não há beijos nem abraços, mesmo do pai. Ontem, a médica disse-me que estava no 7º dia da doença. Fizemos contas: o pai deve chegar ao 7º dia na segunda-feira, 23. Não fez o teste, mas estará infetado. O pico inflamatório da doença é o sétimo dia, depois começa a descer até ao 14º.
Meço a temperatura de meia em meia hora. A minha família mede de manhã e à noite. Temos medo. Não vamos brincar, isto é assustador. Estou bem, mas assusta-me o que me espera porque voltarei a trabalhar. Talvez saia de casa e só volte quando isto terminar, porque ninguém sabe se fico imune.” W