AS HISTÓRIAS DE JOÃO ALVES
Era uma grande promessa no Benfica, mas as lesões deram cabo dele: ainda hoje tem uma placa com 12 parafusos numa perna. Herdou as luvas pretas do avô, escapou à guerra colonial e coleccionou multas por excesso de velocidade na Suíça
As muitas peripécias do treinador: as lesões, a fuga à guerra colonial e as multas na Suíça
Poucos dias antes de se registarem os primeiros casos de covid-19 em Portugal, a SÁBADO esteve com João Alves no estádio do Cova da Piedade, equipa que o treinador, de 67 anos, orienta desde janeiro e está a tentar salvar da descida ao terceiro escalão de futebol. Agora, isolado no Alentejo, falou com a SÁBADO sobre o coronavírus, o tema do momento, e não escondeu a preocupação com esta pandemia que obrigou o mundo do desporto a parar.
Foi graças ao seu avô Carlos que ficou conhecido como o Luvas Pretas. Conte-nos essa história.
Ele jogava no Carcavelinhos, uma das melhores equipas de Portugal. Os jogadores estavam a almoçar antes de uma final do Campeonato de Portugal [prova antecessora da Taça de Portugal], com o Benfica, e uma menina foi ter com o meu avô e ofereceu-lhe umas luvas pretas. Disse-lhe que se ele jogasse com elas o Carcavelinhos seria campeão. Ele guardou-as. No jogo, o Carcavelinhos estava a perder 1-0 ao intervalo, mas os colegas do meu avô lembraram-se daquilo e incentivaram-no a utilizá-las. No mundo do futebol
“Dei luvas a fãs e amigos. No fim dos jogos havia invasões de campo pacíficas e roubaram-me muitas luvas”
há muita superstição... A verdade é que ele entrou com as luvas, o Carcavelinhos ganhou 2-1 e sagrou-se campeão. Tenho essa medalha guardada! Começou aí a história das luvas pretas. O meu avô ainda jogou mais alguns anos e fez 18 jogos pela seleção. Fez parte da célebre equipa olímpica de Amesterdão em 1928.
E depois chegou a sua vez de utilizar as luvas pretas...
O meu avô pedia-me para as utilizar, mas tinha vergonha... As luvas pertenciam aos guarda-redes, era uma indumentária diferente. Não conseguia jogar com elas. E isto numa altura em que já estava no Benfica. Era benfiquista desde pequenino, pois habituei-me a ver o Eusébio e aquela equipa bicampeã europeia a passear pela Europa.
Quando é que as utilizou pela primeira vez?
Foi no campo do Malveira. O meu avô morreu dois dias antes e quando estive com ele pediu-me, uma última vez, para as utilizar. Só depois de ele ter falecido é que resolvi começar a jogar de luvas e olhe, foi assim até ao fim da carreira. Há uma coisa que me enche de orgulho. O meu avô nasceu em 1902 e hoje, mais de 100 anos depois, estamos aqui a recordá-lo.
Tem noção de quantos pares de luvas usou ao longo da carreira?
Não faço ideia! Dei luvas a muitos fãs e amigos. No fim dos jogos, antigamente, havia um contacto diferente, havia invasões de campo pacíficas e roubaram-me muitas luvas. Hoje os jogadores dão as camisolas, no meu caso dava as luvas.
Ganhou o gosto pelo futebol em Albergaria-a-Velha [Aveiro], onde nasceu, ou foi mais tarde?
Comecei a jogar em Albergaria-a-Velha. A casa onde morava com os meus avós era no parque desportivo e, por isso, posso dizer que nasci num campo de futebol. Jogava na rua, que é algo que faz muita falta aos jogadores de hoje. Dali fui para a Sanjoanense, pois o meu avô foi acabar os dias em São João da Madeira. Fui observado por olheiros de vários clubes, acabei por ir para o Benfica à experiência e assinei contrato.
Lembra-se do seu primeiro salário no Benfica?
Fui ganhar 250 escudos para os juniores, mas, mais tarde, fiz um contrato de três anos como sénior e recebia 1.500 escudos.
O que fez com esse dinheiro?
Q Uma patuscada com amigos! Gostava muito de bolos e fomos a uma pastelaria comprar muitos pastéis de nata. Quando fui visitar os meus pais pela primeira vez, depois disso, também lhes dei parte desse valor.
A tropa também marcou parte da sua vida como jogador.
Era uma das grandes promessas do Benfica quando cheguei a sénior, mas antes de um Europeu de juniores tive uma lesão grave. Deram-me cabo do menisco... Tive de ser operado pelos médicos do Benfica, mas na altura era com grandes facadas. Levei 50 pontos e agora tenho uma artrose. A meio dessa época dei cabo do outro menisco e levei mais umas facadas no joelho direito. No ano seguinte fui emprestado ao Varzim e fiz uma grande época. Depois fui emprestado ao Montijo e chamaram-me para a tropa, para o RI7, de Leiria, para fazer a recruta. Foram quase três anos... Fiz uma época espetacular no Montijo! O Pedroto queria levar-me para o Vit. Setúbal, mas o Benfica não deixou e fui para o Montijo. No fim do ano fui mobilizado para a Guiné. Estávamos perto do 25 de Abril de 1974 e as coisas estavam no limite... Estive em vários quartéis, como na RAF, em Queluz. Até que arranjei um rapaz para ir no meu lugar. Precisava de 90 contos e arranjei o dinheiro. O Benfica não me deu esse valor porque não contava comigo, mas o Montijo chegou-se à frente e pagou ao tal rapaz para ir no meu lugar. Felizmente, o 25 de Abril aconteceu passado três ou quatro meses e ele regressou são e salvo.
“O Montijo pagou 90 contos a um rapaz para ir para a guerra colonial na Guiné no meu lugar”
E a carreira, a partir daí, que caminho seguiu?
O Montijo comprou o meu passe ao Benfica por 600 contos. Depois, o Pedroto assinou pelo Boavista e levou três jogadores do Montijo: eu, o Carolino e o Chico Mário. Fomos à Taça UEFA, fizemos um grande campeonato e defrontámos o Benfica na final da Taça de Portugal, em Alvalade. Ganhámos 2-1 e eu marquei o golo da vitória. No ano seguinte, o Boavista voltou a ganhar a Taça de Portugal e discutiu o 1º lugar com o Benfica até ao fim. Era a melhor equipa a jogar futebol em Portugal naquela altura.
E surge a seleção nacional...
Sim! O Pedroto tornou-se, ao mesmo tempo, selecionador e convocou-me para os sub-21. Os treinos eram junto com a seleção A e houve um em que, na segunda parte, me colocou na equipa principal. Começou aí uma nova geração. Ainda me lembro da nossa estreia. Perdemos por 3-0 na Suíça, num particular, e depois defrontámos a Inglaterra no primeiro jogo de apuramento para o Euro 76. Eram quatro equipas no grupo e só se apurava uma, entre Inglaterra, Portugal, Checoslováquia e Chipre. Os ingleses tinham sido campeões do mundo em 1966 e olhavam para nós como uma equipa de miúdos. A verdade é que demos um banho de bola, empatámos 0-0 e ficámos com boas perspetivas de sermos apurados. Mas acabámos em 2º lugar...
Mais para o fim da carreira voltou ao Benfica, mas, antes, ainda jogou no estrangeiro, no Salamanca e no Paris Saint-Germain. Gostou das experiências?
O Salamanca pagou 12 milhões de pesetas! Era um clube mediano, da I Divisão, e fiz a estreia contra o Real Madrid. Perdemos por 1-0 em casa, para o campeonato, mas, a partir dali, nunca mais perdi contra o Real Madrid. Num desses jogos, logo no ano seguinte, ganhámos 1-0 no Santiago Bernabéu com um golo meu. É a única vitória até hoje e ficou para a história. Fui a todos os canais de televisão de Espanha! Acabei a época como melhor jogador num campeonato com Cruijff, Stielike, Kempes...
Chegou a haver interesse do Real Madrid...
Apareceram grandes clubes espa
“No Salamanca, ganhámos 1-0 no Santiago Bernabéu com um golo meu. Ficou para a história”
nhóis. Valência, Atlético de Madrid, Barcelona e Real Madrid... Tive tudo fechado com o Real, mas o Benfica meteu-se pelo meio. O FC Porto, pelo Pedroto, também tentou, mas aquela coisa do Benfica ficou-me... Nunca tinha jogado pela equipa principal e tomei aquela decisão. Jogar no Real Madrid é algo que fica para a vida e perdi essa oportunidade. Foi uma decisão tomada mais com o coração do que com a cabeça.
O que é que aconteceu nesse regresso à Luz?
Voltei para ser campeão, mas não fomos por um ponto. Fiquei tão zangado que voltei a sair. Fui para o Paris Saint-Germain. Adorei! Fui para França como uma grande vedeta. Eu no PSG e o Platini e o Rep no Saint-Étienne. Comecei bem a época e nunca esquecerei um jogo com o Marselha num Parque dos Príncipes lotado e com muitos portugueses a gritarem o meu nome. Mas houve outro jogo, em Sochaux, em que o Genghini resolveu dar-me mais uma medalha. Deixou-me a perna virada ao contrário... Pensei que nunca mais voltaria a jogar. Ainda hoje guardo na perna uma recordação para a vida: uma placa com 12 parafusos. Tinha 26 anos e estava no auge. Tinha tudo para dar certo num clube de grande prestígio, mas fiquei seis meses parado.
Voltou ao Benfica e foi campeão.
Fui campeão duas vezes, conquistei a Taça de Portugal, cheguei a uma final da Taça UEFA, fui à meia-final da Taça das Taças e continuei a jogar na seleção. Já estava perto do meu melhor. Algum tempo depois lá voltei a ser operado, a uma fibrose, na Jugoslávia. Fui com o Pietra, que também foi tratar uma pubalgia. Levámos para o hospital um pijama de seda, mas chegámos lá e era um hospital civil. Vestiram-nos uma farda dos jugoslavos e parecíamos uns palhaços. Ainda hoje nos rimos disso.
Houve um treinador com o qual teve alguns problemas: Eriksson.
É verdade! Era o jogador mais bem pago do Benfica e fiz toda a época como titular. Fomos campeões e só perdemos um jogo: contra o Sporting, por 1-0, em Alvalade. Chegámos invictos à final da Taça UEFA, com o Anderlecht, e ele tirou-me da equipa. Foi muito estranho... E outra coisa... Fomos a Braga na última jornada e dos 22 jogadores do plantel só eu é que não fui convocado. Era um jogo de festa porque já éramos campeões. O Toni era adjunto do Eriksson e já lhe perguntei várias vezes os motivos, mas nunca foi capaz de dizer abertamente o que aconteceu. Mas aconteceu qualquer coisa... É verdade que houve um dia em que cheguei atrasado a um treino, mas não é causa para aquilo. A partir daí resolvi sair. Tinha 31 anos e estava perto do fim da carreira, mas foi uma deceção. Acabei por ir para o Boavista.
Nunca teve a oportunidade de confrontar Eriksson?
Sim. No Boavista, já como treinador, defrontei a Fiorentina na Taça UEFA. O Toni deu-me o contacto do
“Estou a viver no Alentejo e só posso falar com os familiares por videochamada. A situação é delicada”
Eriksson, que estava a treinar a Roma, e encontrámo-nos. Conversámos sobre muitas coisas e ele tentou explicar-me os motivos para aquela decisão. Não me convenceu na totalidade, mas não sou rancoroso.
Como treinador nunca teve a oportunidade de orientar a equipa principal do Benfica. É algo que o deixa triste?
Fui treinador na formação do Benfica, mas não fui com a intenção de treinar a equipa A. Quique Flores saiu naquela altura e não fiz nada para ir para o lugar dele. Não faz parte da minha forma de estar. Não passo à frente de ninguém. Do Benfica acabei por ir para a Suíça.
Gostou da experiência?
Foram dos melhores anos da minha vida. Quando cheguei, o Servette estava na 2ª Divisão e em lugar de descida, mas fomos a tempo. Levei o meu filho Carlos como adjunto, para o ajudar a construir uma carreira. Montámos uma equipa forte mas não subimos. No ano seguinte sim, conseguimos. Foram anos de sonho!
Também teve maus momentos, como as multas que apanhou por excesso de velocidade.
Tantas... Só no meu primeiro dia na Suíça foram quatro! Os radares marcam o limite como 60. Eu passava a 65 e era multado. Em Portugal temos alguma margem, mas ali não.
Agora tem uma tarefa difícil pela frente no Cova da Piedade (penúltimo na II Liga). Pensa continuar a treinar por mais anos?
Tenho a noção de que estou a caminhar para o fim da carreira, mas vou continuar enquanto me sentir bem. Aceitei o convite do Cova da Piedade sabendo os riscos, mas sempre gostei de desafios. Já sabia que isto ia dar trabalho, mas acredito que a época terá um bom fim.
Como está a lidar com esta paragem forçada pela pandemia de covid-19?
O que mudou mais é o facto de não haver tanta proximidade com os familiares, falamos apenas por videochamada. Estou no Alentejo, onde vivo, e a situação é muito delicada. Tenho seguido à risca todas as indicações da Direção-Geral da Saúde e espero que isto passe rapidamente.