JOÃO PEDRO GEORGE
O PAPEL HIGIÉNICO necessita de ser explicado. Em tempos difíceis como estes, em que estamos todos assustados, nenhum outro assunto poderia ser mais oportuno.
De repente, o coronavírus deu-nos a noção da importância do papel higiénico, mostrou-nos que o papel higiénico é muito mais que um simples papel fino e absorvente destinado a limpar o nosso rabo.
Causou admiração ver as multidões em fúria nos supermercados, tomadas pelo pânico, a açambarcar pacotes com dezenas de rolos de papel higiénico – perfumado ou não, com folhas simples, duplas e até triplas – e a correr depois a toda a velocidade para um esconderijo seguro, fechando-se à chave.
Desde que o vírus se introduziu sub-repticiamente na vida de todos nós, a vertigem da compra de rolos de papel higiénico é uma das imagens mais dramáticas da pandemia da covid-19. Com efeito, açambarcar o papel higiénico das prateleiras do supermercado, ou ver grupos de pessoas a procurar, como caçadores recolectores, os lugares onde ainda existissem vestígios de papel higiénico, tornou-se um dos traços descritivos mais evidentes da quarentena obrigatória. Se há um tema que perpetuará a nossa época, o papel higiénico será o mais relevante.
Ao contrário do que pós-modernamente se diz, não se tratou de uma questão de idiossincrasia cultural, tratou-se de um fenómeno verdadeiramente global: de Inglaterra a Singapura, passando pelo Brasil, Estados Unidos, Canadá, França, Nova Zelândia, Austrália, Portugal, etc., o papel higiénico surgiu como um dos bens de consumo corrente mais disputados e deu-nos uma ideia daquilo em que nos fixamos quando temos de sobreviver de forma darwiniana.
O papel higiénico não é, pois, uma questão fútil. É antes uma medida do carácter anal desta pandemia, é o símbolo em estado puro da humanidade a borrar-se de medo. Daí o problema angustiante de uma eventual falta de papel higiénico.
Além disso, vem comprovar, uma vez mais, que o trágico e o banal ligam bem, que a nossa atitude perante a existência é simultaneamente dramática e picaresca.
Por outro lado, é também um índice das implicações psicológicas e sociológicas das pandemias. Ao que parece, as pessoas têm projectado no papel higiénico os seus receios e os seus fantasmas, as suas obsessões e as suas crenças e previsões: “eu sabia que isto ia dar merda”, “vamos todos ficar na merda”, “esta merda está a ir toda pró caralho!”, “o coronavírus é uma bela merda”, “há muita gente que continua a sair de casa e a fazer merda” ou “parto os cornos a quem me infectar com a merda do vírus”.
Ao contrário da política e da religião, que sustentam que os seres humanos não conseguem bastar-se por si mesmos, o Dr. Freud ensina que somos suficientes (apesar de raramente estarmos no nosso pleno juízo), que para sermos humanos não precisamos nem das ideologias nem das religiões institucionalizadas, precisamos apenas de dispensar atenção aos movimentos peristálticos dos intestinos, que levam à evacuação, e de limpar a alcofa.
De resto, mesmo que o papel higiénico esteja contaminado, teremos sempre a satisfação de ter metido o nosso próprio traseiro na cara do vírus (para o Marquês de Sade, referência obrigatória nesta matéria, tão importante como o princípio do prazer, é a maneira como se morre).
Vivemos, sem dúvida, um tempo de merda. Evocamos a merda para a negar e a recalcar, por isso o papel higiénico se repete e se multiplica entre os seres humanos e gera reacções em cadeia dos consumidores. Na realidade, o papel higiénico é uma resposta à pressão do vírus sobre a nossa animalidade fisiológica: na presença da covid-19, os seres humanos sentem a necessidade prosaica de cagar sentenças, a torto e a direito, sobre os assuntos mais completamente inúteis (por exemplo, a maneira como cada qual limpa a padaria).
Mas o papel higiénico não invadiu apenas os nossos sonhos, os nossos impulsos e os nossos conflitos psicológicos. Reter e amontoar rolos de papel higiénico é também o grande plano do actor racional soberano para sobreviver à quarentena: há relatos de pessoas a vender rolos de papel higiénico nos semáforos e o Governo mandou fechar os restaurantes e as pastelarias para evitar que continuássemos a roubar os rolos de papel das respectivas casas de banho.
O rolo de papel higiénico – supérfluo é lembrar – não pode ser analisado isoladamente, sem o contexto que o exprime: o rabo. Em primeiro lugar, a aplicação do papel higiénico nas nádegas nem sempre foi um fenómeno tão comum, tão generalizado e tão universal. Até há pouco tempo, o bidé desempenhava cabalmente a função heróica da limpeza do rabo e da genitália. Porque, enfim, com vírus ou sem vírus, todos necessitamos de limpar a regueifa.
Depois, sem se dar por isso, o papel higiénico foi ganhando um protagonismo cada vez maior, conquistou o seu lugar, impôs-se e assumiu-se como o inimigo natural do bidé: as pessoas começaram a repudiar o bidé, passaram a funcionar segundo o ritmo do papel higiénico.
Agora, por causa do coronavírus, o bidé reclama desforra, assume-se como o reduto que oferece mais segurança aos seres humanos face a um exterior ameaçador, perigoso, incerto e fodido.
Diante da perspectiva da falta de papel higiénico, muitos países viram crescer o interesse pelo bidé, que permite ao cidadão comum limpar despreocupadamente as partes íntimas apenas com um jacto de água. Segundo o Google, só para que tenham uma ideia, nas últimas semanas aumentaram as buscas com o termo “bidé”.
De onde se conclui: neste momento em que o ser humano está de quarentena e precisa tanto de limpar o rabo lá em casa, é preciso ter a coragem de perguntar: quem vos mandou tirar o bidé da casa de banho? W