JOÃO PEREIRA COUTINHO
O NOME É LI WENLIANG.
Pobre alma. Falo do médico oftalmologista que, em Dezembro, tentou avisar os colegas sobre uma nova estirpe do coronavírus. As autoridades policiais entraram em cena e o dr. Li foi forçado a confessar o seu “comportamento ilegal”.
Sabemos onde nos levou essa “ilegalidade”. Mas Pequim, depois de infectar o globo inteiro com as suas mentiras institucionalizadas, resolveu perdoar postumamente o dr. Li, um médico de 34 anos que, só por coincidência, acabaria por ser vitimado pela covid-19. Que bonito gesto.
Mas há mais: nesta nova campanha fraudulenta, o Governo chinês prepara-se para punir os polícias que tiveram a ousadia de perturbar o heróico dr. Li.
Nada disto me espanta: nem a ocultação inicial, nem a perseguição ao médico, nem a sua reabilitação para efeitos de propaganda. Faz parte dos manuais.
Como também não me espantam as dúvidas crescentes sobre o sucesso da estratégia chinesa na contenção do bicho: informa o The Guardian que, nos hospitais de Wuhan, são recusados testes a quem apresenta sintomas suspeitos. Sem falar das contabilidades chinesas, onde não entram os casos assintomáticos ou os pacientes que voltaram a acusar positivo nos testes e que seriam inestimáveis para o estudo da doença.
O que espanta, isso sim, é a forma suave, quase compreensiva, como o mundo olha para o comportamento de um regime que não merece a mais vaga confiança. Por mais luvas ou máscaras de protecção que agora despeje sobre a Europa.
Depois da tormenta, espera-se que a União Europeia e os Estados Unidos possam repensar a sua dependência económica e tecnológica da China. Como? Deslocalizando, para a esfera das democracias, indústrias vitais para a soberania dos estados e para a vida dos cidadãos.
A vassalagem que nos trouxe até aqui não faz bem à saúde.
CONVERSO COM AMIGOS
em isolamento. Falo daqueles amigos que, antes da pandemia, não começavam nenhuma conversa sem um suspiro profundo e sofrido pela vida atribulada que levavam. Queriam simplesmente ir para casa. Durante uma semana, um mês, talvez um ano inteiro.
E depois, na lista das prioridades, estava o sono; as crianças; os 500 livros que não conseguiram ler nos últimos 30 anos; as séries de televisão “imperdíveis” que eles, logicamente, perderam; e, para os mais espirituais, a necessidade de se “reencontrarem” (“limpar a alma” é outro clássico).
Hoje, quando falo com eles, o sono é a mesma miséria; as crianças estão “insuportáveis”; os livros que faltam são 499,5 (sempre conseguiram ler metade do Guerra e Paz); as séries são “todas iguais” (sic); e, em matéria de “reencontros”, o GPS está avariado.
E ainda só passaram duas semanas.
A melhor forma de pensar no coronavírus passa por imitar os nossos antepassados, que explicavam as pestes com um qualquer castigo divino. Neste caso, é como se Deus tivesse escutado as preces do homem moderno, sempre exausto e ansioso, em busca do seu oásis doméstico.
Cuidado com o que desejas, diziam os antigos. Não há maior castigo do que vermos os nossos desejos transformados em realidade.
MAS NEM TUDO ESTÁ PERDIDO:
escrevi neste espaço que a editora Hachette, cedendo ao ódio das matilhas censórias, tinha cancelado o lançamento da autobiografia de Woody Allen. Lamentei o facto e, fazendo minhas as palavras do Miguel Esteves Cardoso, não voltarei a comprar um livro dessa tribo.
Mas espero comprar vários livros da Arcade, que aceitou publicar as memórias. Conhecia a editora, por causa de Samuel Beckett e de algumas traduções de Cioran. Mas agora, ao consultar o catálogo, descubro que Woody Allen foi salvo da fogueira por uma editora tendencialmente de “direita”. Porque é um bom negócio e a direita sempre apreciou o exercício?
Talvez. Ou talvez a direita, com o seu célebre gosto pelo “politicamente incorrecto”, acabe por dedicar à liberdade de expressão uma estima que desertou grande parte da esquerda progressista. W