“A história pode servir usos menos legítimos”
ANTÓNIO MARTINS QUARESMA Por Paulo Barriga (texto) e Raquel Wise (fotos)
Foi Filipe II quem mandou construir uma fortificação que consagrou a São Clemente, sobre o promontório natural de onde se avista a barra do Mira em toda a sua extensão. E é precisamente na barbacã do chamado “castelo” de Vila Nova de Milfontes que António Martins Quaresma, 74 anos, desfia a história marítima e fluvial de um povo que apelida de “anfíbio”, por se dividir tradicionalmente entre os trabalhos agrícolas e as artes da pesca. Professor, doutorado com uma dissertação sobre História Portuária, Martins Quaresma é uma espécie de enciclopédia viva da historiografia local. Defende o cotem nhecimento do passado como ferramenta de cidadania e como veículo para entender o mundo atual. Mas não deixa de ressalvar que a história também pode servir “usos menos legítimos”, em função das ideologias e das políticas dominantes.
Certa vez disse que “o conhecimento da história é o alicerce da identidade e da cidadania”. Em sua opinião, os portugueses são plenos cidadãos? Ou de outra forma: conhecem a sua história?
A expressão que cita, tal como está formulada, não a costumo, hoje, utilizar. De qualquer modo, parece-me que o estudo da história nas escolas sofrido revezes, com diminuição do tempo que lhe é dedicado. Quanto à história local, mesmo quando existem recursos, isto é, historiografia, nem sempre eles são usados em termos programáticos.
h
O historiador, de 74 anos, fotografado junto ao rio Mira
“Alguns adeptos da nacionalidade portuguesa de Colombo imaginaram um desembarque em Odemira. É uma fantasia”
O termo “identidade”, nos tempos que correm, está a derrapar para o lado dos populismos e dos novos nacionalismos. Afinal, o que fazer com o conhecimento da história e o seu bom uso?
Os conceitos podem ser apropriados, segundo os tempos, em função de ideologias ou de políticas, e a história pode servir usos menos legítimos. O conhecimento da História é isto
mesmo: conhecimento. E conhecimento fundamental para entendimento do mundo em que vivemos.
O historiador enquanto jovem tem sempre aquela pretensão de acrescentar qualquer coisa à grande História, chamemos-lhe assim, mas o António Martins Quaresma tem dedicado a sua vida à historiografia local. Conhecendo o que nos está mais próximo é a melhor forma para compreendermos o mundo e a humanidade no seu todo?
A história local, feita, durante muito tempo, por eruditos locais, carregou-se de conotações de amadorismo. Atualmente, através de metodologias mais adequadas, como a microanálise, a utilização criteriosa das fontes e o enquadramento bibliográfico atualizado e pertinente, a história de pequenos espaços permite um nível de pesquisa que a “grande história” não pode alcançar. A articulação com a história regional ou nacional deverá ser efetuada através do “jogo de escalas”, expressão consagrada numa obra coordenada por Jacques Revel.
No seu caso, sendo um habitante local, sente que também já faz parte da própria história?
De algum modo, sim. Por vezes sinto-me como um ator ou espectador no decurso temporal do espaço em que nasci e resido. Afinal, só não residi aqui durante um período relativamente curto e, mesmo assim, nunca perdi o contacto com a terra onde nasci e fui criado.
“O turismo na costa alentejana começou no século XIX e era um balnearismo de elites”
Terapias No século XIX, os banhos salgados no Alentejo eram considerados terapêuticos
A sua tese de doutoramento é sobre história portuária. Há muito para dizer sobre a história costeira desta região?
Certamente que há muito que dizer. Um dos portos desta costa, o de Sines, é hoje um dos principais portos portugueses. Em termos de história, é preciso ver que o mar sempre foi o meio de transporte mais eficaz, em especial de mercadorias, e pequenos recessos como Porto Covo ou rios como o Mira sempre permitiram as atividades marítimas, quer o transporte, quer a pesca.
Normalmente, associamos a história marítima não apenas às descobertas, mas também às grandes tragédias, aos naufrágios e, claro, aos tesouros perdidos. A nossa costa é fértil nessa matéria?
O mar foi um meio de ligação entre povos e de subsistência humana, mas também, por razões dramáticas, um “lugar do medo”. Nesta costa há navios naufragados, embora nem sempre os mistérios escondidos sob as águas tenham sido revelados através de trabalhos de arqueologia subaquática.
O nome de Cristóvão Colombo, ou Colón, costuma ser associado a diferentes localidades com histórias, algumas, que às vezes roçam o risível. E também Vila Nova de Milfontes parece ter uma aven- Q