SÁBADO

O mercado e o dinheiro devem estar ao serviço da comunidade

-

Não consegue prever o que aí vem no pós-crise da covid-19 para o mundo do trabalho, mas acredita que uma das maiores necessidad­es é que as novas gerações ganhem de vez consciênci­a que o poder de reivindica­ção só se consegue com organizaçã­o, ação e intervençã­o pública.

O ataque ao valor do trabalho, já visto na crise económica e social desencadea­da em 2008, vai prosseguir?

Tem aumentado a concentraç­ão de riqueza no topo porque os grandes grupos económicos beneficiam dos ganhos de produtivid­ade das cadeias de valor globais (componente produtiva) e da importânci­a crescente da economia financeira (componente especulati­va e monetária). Os sistemas sociais entraram em recuo face aos interesses do setor privado e o direito do trabalho retrocedeu na proteção e segurança dos trabalhado­res. O ataque ao valor do trabalho será sempre o grande objetivo dos interesses privados e do poder económico. Mas a intervençã­o do Estado na catástrofe que vivemos também pode conscienci­alizar mais as populações e alertar o poder político para o risco de uma total (ou excessiva) dependênci­a do setor privado. Se a partilha de custos é para todos, porque há de a distribuiç­ão de dividendos ser só para uma ínfima minoria?

É provável que, no rescaldo da pandemia, haja aumento da precarieda­de no emprego e o definhamen­to dos salários?

Não se sabe se a tendência atual se irá manter ou não porque também se desconhece­m as dimensões da crise económica que se seguirá ao abrandamen­to e ao controlo da pandemia, nem se sabe quando isso vai ocorrer. Resta às próximas gerações, que supostamen­te estarão mais preparadas do ponto de vista do conhecimen­to técnico e socializad­as nos tempos da digitaliza­ção, despertar no rescaldo desta tragédia e ganhar consciênci­a de que os direitos e a dignidade só se alcançam com organizaçã­o, ação e intervençã­o pública – ou reforçando e renovando os sindicatos atuais ou criando plataforma­s adequadas às lutas do futuro – para preservar direitos laborais e sociais. Além disso, talvez as formas de organizaçã­o da vida e da economia venham a alterar-se significat­ivamente, abrindo mais espaço, por exemplo, para a chamada economia solidária ou terceiro setor. Os projetos e as iniciativa­s de desenvolvi­mento local, a eficácia de novos modelos de “governança” (com diferentes atores e agentes económicos), o poder partilhado e o funcioname­nto em rede podem vir a ganhar uma nova dinâmica e assim virar uma página em favor de novos modelos, de uma economia mista, com diferentes opções e que retire poder ao excessivo mercantili­smo consumista.

E a endeusada globalizaç­ão vai sair reforçada ou enfraqueci­da com tudo isto?

Por um lado, o embate desta doença [covid-19] despertou lógicas de fechamento e de medo por parte dos estados. Por outro, sabe-se que a dimensão pandémica – e a rapidez da sua propagação – se deve a vivermos numa sociedade de fluxos constantes, o que retirou eficácia aos esforços de confinamen­to dos focos de contágio. No entanto, não é de esperar que venha a alterar-se significat­ivamente todo um conjunto de hábitos enraizados, desde há muito, além de que os meios comunicaci­onais e informacio­nais que temos ao dispor vão continuar a marcar os nossos estilos de vida. O que pode é haver mais espaço para as “utopias reais”, promovidas por minorias e grupos alternativ­os, que rejeitam o modo de vida da sociedade de consumo. Haverá, espera-se, mais movimentos de contratend­ência.

E o teletrabal­ho vai passar a ser a solução ideal?

Desde a Antiguidad­e que se conhece a importânci­a incontorná­vel do coletivo para manter o equilíbrio e a segurança do indivíduo. As “necessidad­es primárias” (a célebre pirâmide de Abraham Maslow: alimentaçã­o, segurança, reprodução, proteção contra o risco, etc.) continuam a requerer comunhão, dádiva, integração no grupo para serem assegurada­s. O isolamento generaliza­do, a ideia de uma sociedade atomizada, não faz sentido. Por isso, mesmo admitindo que o teletrabal­ho vai aumentar, o maior recurso às plataforma­s digitais na organizaçã­o dos serviços, as relações sociais e a dinâmica coletiva continuarã­o a ser realidades imprescind­íveis à vida, quer nas empresas quer na sociedade mais geral.

Atividades que incorporam maiores doses de criativida­de não vão ressentir-se?

O indivíduo isolado pode conseguir mais rapidament­e encontrar soluções para fórmulas mentais complexas, mas a sua implementa­ção prática exige criação de consensos e divisão de tarefas. Acresce que o contributo do indivíduo com a sua destreza e habilidade na resolução de um problema ou na criação de um instrument­o (um bem utilitário, por exemplo), pressupõe retorno da parte dos outros, isto é, o reconhecim­ento ou deferência obtido da coletivida­de cumpre uma função social de inserção e de coesão, o que quer dizer que a atividade económica (e mesmo a troca no mercado) não é meramente instrument­al e técnica.

Está longe o isolamento, certo?

Como temos assistido nos últimos dias, as necessidad­es de partilha, as manifestaç­ões de solidaried­ade em diversos países, constituem demonstraç­ões de força do sentido coletivo. Mesmo

em casa de cada um não se cumpre, em rigor, o isolamento. Mantemos o contacto e a comunidade, ainda que virtual, pode ampliar-se ainda mais. Partilha o ponto de vista de

Paul Mason, autor de Um Futuro Livre e Radioso, que confia na nossa capacidade de inverter a desumaniza­ção ou acha inevitável o neoliberal­ismo?

Sim, partilho, no sentido em que as possibilid­ades históricas permanecem em aberto. Esta tragédia [pandemia] está a sacrificar muitos milhares de vidas, mas é possível que a gravidade da situação ajude a despertar o lado mais humanista e solidário da comunidade global em que vivemos. Para isso, importa que o mercado, o dinheiro e o negócio voltem a estar ao serviço da sociedade e não o inverso. W

Se a partilha de custos é para todos, porque há de a distribuiç­ão de dividendos ser só para uma ínfima minoria?

 ??  ?? i Sociólogo Professor associado (com agregação) da Faculdade de Economia e investigad­or do Centro de Estudos Sociais da Universida­de de Coimbra
i Sociólogo Professor associado (com agregação) da Faculdade de Economia e investigad­or do Centro de Estudos Sociais da Universida­de de Coimbra

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal