O inimigo genial
SE TANTOS INSISTEM tanto tempo em classificar a presente crise de saúde pública como uma guerra, será útil recordar que o confronto existe há pelo menos 10 mil anos. Desde a Revolução Neolítica, com o abandono da vida nómada de caçadores-recolectores a favor do sedentarismo de trabalho agrícola comunal e, a seguir, das trocas comerciais entre centros urbanos demograficamente densos, as epidemias tornaram-se o reverso da medalha da prosperidade. Quanto mais civilizados ficámos, mais pandemias provocámos. As maiores geraram baixas inimagináveis para o quadro de pensamento contemporâneo, mesmo com a alucinante circulação de pessoas e bens no mundo pós-industrial, mesmo se não sabemos como acabará o terrível surto epidémico da covid-19.
A Praga de Justiniano, de 541-542 (bactéria por contágio de pulgas, a partir de ratos), causou 50 milhões de mortos e implodiu de vez o império romano. A peste bubónica de 1347-1351 matou 200 milhões de europeus, dizimando metade da população do continente (o patogénico foi a mesma bactéria). O surto de varíola de 1520 terminou com a vida de 90% dos indígenas sul-americanos, incapazes de resistir à doença que os “conquistadores” espanhóis levaram nos seus barcos. A Gripe Espanhola de 1919 alastrou-se a todo o mundo, aniquilando entre 40 a 50 milhões de pessoas (vírus com origem em porcos). A Sida tomou entre 25 e 35 milhões de vidas desde 1981 (origem em vírus de contágio original por chimpanzés). A covid-19 é um coronavírus cuja transmissão se terá iniciado a partir de pangolins chineses, um mamífero cujas escamas são muito apreciadas na Ásia.
Mas este inimigo genial é também um dos nossos melhores amigos. Num livro que poderíamos ler em voz alta aos nossos filhos, O Corpo: Um Guia Para Ocupantes (Bertrand, 2019), Bill Bryson explica de forma cristalina que são as bactérias dentro de nós a transformar 80% do ar que respiramos, composto de nitrogénio, em amoníaco. Sem essas bactérias, iríamos desta para pior. Triliões de micróbios vivem no nosso corpo, e são eles a garantir-nos 10% das calorias de que necessitámos, processando alimentos e deles extraindo nutrientes como vitaminas B2, B12 ou ácido fólico. Há 40 mil espécies diferentes de micróbios a viver de forma benigna no luxuoso condomínio humano, 36 mil delas no calor do tubo digestivo. De cerca de um milhão de seres microbianos conhecidos, apenas 1.415 provocam doenças na espécie humana. Embora alguns deles sejam letais – os vírus, por exemplo, são mortos-vivos tão fingidores como os poetas; não estão mortos, mas deixam de estar inertes quando se acoplam a células activas. Das centenas de milhares de vírus conhecidos, só 263 afectam os humanos.
Vivemos no planeta das bactérias e dos vírus. Elas e eles foram os primeiros. Elas e eles serão os últimos. Somos meros convidados no seu habitat natural: não precisam de nós, e podem matar-nos a qualquer momento. Mas não sobreviveríamos um dia sem eles. W