SÁBADO

O inimigo genial

- Jornalista Pedro Marta Santos Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

SE TANTOS INSISTEM tanto tempo em classifica­r a presente crise de saúde pública como uma guerra, será útil recordar que o confronto existe há pelo menos 10 mil anos. Desde a Revolução Neolítica, com o abandono da vida nómada de caçadores-recolector­es a favor do sedentaris­mo de trabalho agrícola comunal e, a seguir, das trocas comerciais entre centros urbanos demografic­amente densos, as epidemias tornaram-se o reverso da medalha da prosperida­de. Quanto mais civilizado­s ficámos, mais pandemias provocámos. As maiores geraram baixas inimagináv­eis para o quadro de pensamento contemporâ­neo, mesmo com a alucinante circulação de pessoas e bens no mundo pós-industrial, mesmo se não sabemos como acabará o terrível surto epidémico da covid-19.

A Praga de Justiniano, de 541-542 (bactéria por contágio de pulgas, a partir de ratos), causou 50 milhões de mortos e implodiu de vez o império romano. A peste bubónica de 1347-1351 matou 200 milhões de europeus, dizimando metade da população do continente (o patogénico foi a mesma bactéria). O surto de varíola de 1520 terminou com a vida de 90% dos indígenas sul-americanos, incapazes de resistir à doença que os “conquistad­ores” espanhóis levaram nos seus barcos. A Gripe Espanhola de 1919 alastrou-se a todo o mundo, aniquiland­o entre 40 a 50 milhões de pessoas (vírus com origem em porcos). A Sida tomou entre 25 e 35 milhões de vidas desde 1981 (origem em vírus de contágio original por chimpanzés). A covid-19 é um coronavíru­s cuja transmissã­o se terá iniciado a partir de pangolins chineses, um mamífero cujas escamas são muito apreciadas na Ásia.

Mas este inimigo genial é também um dos nossos melhores amigos. Num livro que poderíamos ler em voz alta aos nossos filhos, O Corpo: Um Guia Para Ocupantes (Bertrand, 2019), Bill Bryson explica de forma cristalina que são as bactérias dentro de nós a transforma­r 80% do ar que respiramos, composto de nitrogénio, em amoníaco. Sem essas bactérias, iríamos desta para pior. Triliões de micróbios vivem no nosso corpo, e são eles a garantir-nos 10% das calorias de que necessitám­os, processand­o alimentos e deles extraindo nutrientes como vitaminas B2, B12 ou ácido fólico. Há 40 mil espécies diferentes de micróbios a viver de forma benigna no luxuoso condomínio humano, 36 mil delas no calor do tubo digestivo. De cerca de um milhão de seres microbiano­s conhecidos, apenas 1.415 provocam doenças na espécie humana. Embora alguns deles sejam letais – os vírus, por exemplo, são mortos-vivos tão fingidores como os poetas; não estão mortos, mas deixam de estar inertes quando se acoplam a células activas. Das centenas de milhares de vírus conhecidos, só 263 afectam os humanos.

Vivemos no planeta das bactérias e dos vírus. Elas e eles foram os primeiros. Elas e eles serão os últimos. Somos meros convidados no seu habitat natural: não precisam de nós, e podem matar-nos a qualquer momento. Mas não sobreviver­íamos um dia sem eles. W

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal