Terra Americana, o livro que enfureceu os escritores mexicanos
… mas está a ser acusada de apropriação cultural. Jeanine Cummins é a autora do momento graças a Terra Americana, sobre os migrantes mexicanos.
em quando há uma história que, para ser contada, precisa que os princípios do jornalismo sejam atirados para um copo misturador e feitos em papa. A história de Terra Americana constitui-se como um desses momentos. A notícia do seu lançamento foi, na verdade, precocemente atropelada por outra: que este romance é, na verdade, mais um prego no caixão de quem defende a diversidade de vozes na literatura como no mundo.
Expliquemo-nos, já que já atirámos o lead da notícia pela janela: Terra Americana (que, no original, se chama American Dirt) é um livro sobre uma mulher (Lydia) e o seu filho (Luca) que se veem obrigados a abandonar Acapulco fugidos quando toda a sua família é assassinada no jardim de casa por um cartel que os vai perseguir até ao fim do mundo.
Quando o livro foi publicado no início do ano nos Estados Unidos, foi instantaneamente glorificado. Stephen King, por exemplo, considerou-o extraordinário. John Grisham foi bem mais longe: “Escrevo porque gosto de ler e há muito que uma leitura não me provocava tanta emoção. O enredo é inteligente e imprevisível. A mensagem é oportuna sem ser política. As personagens são violentas, bondosas, sádicas, frágeis e heroicas. É um livro autêntico.”
A autenticidade do livro foi, contudo, aquilo que o pôs a aguardar julgamento debaixo da guilhotina. É que, assim que o leitor comum começou a olhar para esta história (que começa em Lydia e o seu filho mas acaba em todos quantos migram anualmente à procura da sobrevivência nos Estados Unidos, incluindo aqueles que nunca chegam), detetou-lhe alguns problemas, o primeiro dos quais é que a autora, por não ser mexicana, não teria autoridade para contar a história de uma mãe e de um filho mexica
Terra Americana está a ser comparado a As Vinha da Ira. Conta a história de uma mãe e de um filho que apanham A Besta, o comboio que leva os migrantes para o Norte
nos. A história não poderia, assim, ser autêntica.
Ao mesmo tempo que exultava pelo entusiasmo com que outros escritores recebiam o seu livro e era convidada por Oprah para o seu Clube de Leitura (o que, como se sabe, catapulta qualquer livro nos Estados Unidos para a estratosfera das vendas), Jeanine via-se a braços com a crítica. E é curioso perceber como grande parte da promoção que tem feito tem sido num tom de justificação (de resto, a escritora – que se diz “metade latina” ou “latina branca” em algumas entrevistas – dedica as últimas páginas do romance a explicar porque decidiu contar esta história): garante que sempre se interessou pelas questões da injustiça e da imigração, que leu tudo e viu
todos os documentários que havia para ver, que fez muitas entrevistas e que foi a muitas casas de acolhimento.
Alguns leitores e muitos autores latinos e mexicanos não lhe perdoam, contudo, a prepotência de escrever sobre uma vida que não conhece, de usar termos e expressões que um migrante mexicano não usaria, de se querer apropriar dos temas que, a seu ver, lhes são exclusivos. “Fico triste que se sintam assim. Sei que cometi erros. Fiz cinco anos de pesquisa para tentar não cometer erros. E também acho que essa não é a resposta de todo o universo de escritores latinos e mexicanos. Recebi muito apoio de alguns.”
Sandra Cisneros, autora de A Casa da Rua das Mangas e distinguida pelo governo norte-americano com a Medalhas das Artes, esteve nesse grupo. Sobre Terra Americana disse: “Este livro não é apenas o grande romance americano. É o grande romance de las Americas. É o grande romance do mundo! É a história internacional dos nossos tempos.”
Os críticos, contudo, não a pouparam – e Jeanine, como acabou por confessar já em entrevistas, também não se preparou para isto. Demonstrou-o, por exemplo, quando partilhou nas redes sociais uma fotografia do jantar de lançamento do livro em que como centros de mesa havia vasos com arame farpado, para lembrar a capa do livro, ou quando partilhou uma fotografia de uma fã que tinha ilustrado as unhas com o mesmo arame farpado. Com aquilo que pareceu honesto arrependimento, a escritora já lamentou as duas falhas. Quanto às dúvidas sobre se deveria ter escrito este livro não sendo mexicana, diz que também as teve, mas que alguém tinha de o escrever. W