Carlos Rodrigues Lima
NADA HABITUADOS a crises sanitárias ou a fenómenos virais, foi com a habitual bonomia e o “nacional porreirismo” que os portugueses enfrentaram, numa primeira fase, a covid-19, como se, num pensamento bem à maneira de estar do português médio, esta gripe passasse com meia dúzia de Ben-u-ron e uns chás de limão. Não só não vai passar assim – como infeliz e diariamente se comprova através dos números –, como vai deixar marcas profundas para o futuro.
É verdade que Portugal, depois da bancarrota de 2011, tem passado ao lado de todo o tipo de crises internacionais, sobretudo do terrorismo e de catástrofes naturais, como os furacões, colocando-se na geografia mundial como uma espécie de aldeia gaulesa, onde imperava a tranquilidade e a boa qualidade de vida, atraindo assim milhões de euros em investimento e turismo, que alimentaram uma economia estruturalmente débil mas, uma vez mais, à boa maneira portuguesa, dava para ir vivendo…
A ameaça invisível do vírus veio alterar todo este estado de coisas. Afinal, Portugal, tal como os demais países do mundo, está sujeito a catástrofes, crises, epidemias, capazes de, além das vítimas mortais, paralisar todo um país, colocando em risco o seu futuro.
Se é já claro que o coronavírus pôs a nu todas as fragilidades do Serviço Nacional de Saúde, o futuro pós-pandemia deve, desde já, preocupar-nos, no sentido de que, por um lado, vamos, pela primeira vez depois do 25 de Abril, viver com medo. Seja de uma nova doença, de um novo vírus ou do que por cá ficou da atual. Ora, nenhuma sociedade se realiza plenamente se viver com medo. De excecional, o conceito de distanciamento social, dependendo dos meses de quarentena obrigatório, corre um infeliz risco de se instalar nas mentes de cada um de nós, tornando-nos cada vez mais dependentes da tecnologia portátil para falar com amigos, conhecidos, familiares ou para dizer um simples “bom dia” ao colega do lado, já que nas grandes cidades ninguém cumprimenta sequer o vizinho da frente, a não ser nas reuniões do condomínio. O problema está aqui: que a exceção se torne regra, que nos habituemos a isto, que esta “excecional” normalidade decretada pelo estado de emergência se imponha como um novo modo de estar na vida, estilhaçando laços e ligações sociais que nos mantiveram vivos (no sentido de desfrutar a existência humana) durante anos.
Se as redes sociais deram o primeiro impulso para o isolamento do indivíduo, entretido em comunidades virtuais que falsamente lhe estimulam um sentimento de pertença a um grupo de semelhantes, comunicando com o mundo real através de posts, stories e afins, a crise do coronavírus poderá contribuir para o crescimento de uma multidão cada vez mais solitária (na expressão de David Riesman), incapaz de se relacionar diretamente com próximo, remetendo toda a comunicação interpessoal para videochamadas, Facetime e DMs e por aí adiante. Progresso, chamam-lhe os amantes e crentes nessa religião que dá pelo nome de tecnologia, em que toda a gente pode ter o seu pequeno altar em casa ou na palma da mão e se sentir um padre António Vieira, pregando sermões à distância. Para este retrocesso civilizacional, não há alta hospitalar. É uma fatalidade. W