OS COMANDANTES DA GUERRA
Donald Trump e Jair Bolsonaro já proferiram várias asneiras. Mas se a hora é de teste, também há quem passe: protagonistas acidentais, sobreviventes inesperados e, sim, até líderes inspiradores.
Os líderes de países ou regiões que se estão a revelar heróis e protagonistas acidentais na luta mundial contra a pandemia
Cuomo, o novo herói americano hBasta ler meia dúzia de títulos para se perceber que há um fenómeno a acontecer. “Andrew Cuomo, superestrela das redes sociais” (Politico); “Andrew Cuomo prospera na linha da frente da crise americana do coronavírus” (Financial Times); “Andrew Cuomo, herói pela vida” (New York Daily News); “Andrew Cuomo é o maníaco do controlo de que precisamos neste momento” (The New York Times); “Como o coronavírus fez de Andrew Cuomo o governador da América” (US News); “Deixem Andrew Cuomo, não Trump, falar pela América” (Washington Post). Carl Bernstein, um dos jornalistas do caso Watergate, resumiu assim o caso à CNN: “É verdadeira liderança, do género que o Presidente dos EUA deveria ter dado ao povo americano ao longo desta crise, mas não deu.”
Há dois lados para o sucesso do governador de Nova Iorque: ação e palavra. Cuomo não hesitou em tomar as medidas mais drásticas ao seu alcance, mesmo tendo de atropelar as autoridades municipais (o presidente da câmara de Nova Iorque, Bill Blasio, pareceu desorientado e depois foi apanhado num ginásio...) e federais (Trump continuava numa narrativa de desvalorização). Quanto à palavra: parte dos aplausos devem-se às suas extraordinárias conferências de imprensa diárias, longas, preparadas, cheias de dados, diretas. A que mistura elementos mais pessoais: já contou como o isolamento custa a todos, e também a ele (“até já me chateio com o cão”) e como há que aproveitar o que estes tempos podem trazer de bom. Neste caso, a filha já adulta está a ficar com ele.
O GOVERNADOR DE NOVA IORQUE, ANDREW CUOMO, TORNOU-SE A ESTRELA DA CRISE NOS EUA
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Começou confrontativo com Donald Trump, exigindo ação e apontando para questões concretas: era preciso pôr o governo federal a fazer as compras de material, em vez de ter todos os Estados a competirem uns com os outros; era preciso libertar os ventiladores da reserva estratégica de defesa dos Estados Unidos. A Casa Branca não gostou, mas percebeu que não valia a pena hostilizar e houve tréguas. Cuomo resumiu: “Se alguém pode ajudar o meu povo e ajudar o país, Deus o abençoe.”
Também não perdeu o sentido de humor. Quando o irmão, Chris Cuomo, pivô da CNN, o convidou e lhe agradeceu por ter ido, respondeu: “A mãe obrigou-me.” de3forma surpreendente num tecnocrata pouco experiente, soube adotar um tom de emotiva unidade nacional. Num discurso marcante a 11 de março, enveredou por aí: “Continuemos distantes hoje para nos abraçarmos com mais calor e para avançarmos juntos mais depressa amanhã. Conseguiremos.” Este conseguiremos juntos, o “insieme ce la faremo”, ou simplesmente o refrão “ce la faremo”, tornou-se quase o lema de Itália por estes dias.
E o ex-professor de Direito, segundo uma sondagem recente da Demos, tem uma taxa de aprovação de
O “CE LA FAREMO” (CONSEGUIREMOS) DE CONTE TORNOU-SE QUASE UM REFRÃO EM ITÁLIA
71%, a mais alta de qualquer primeiro-ministro italiano nos últimos 10 anos. Quanto às medidas draconianas, 94% dos italianos aprovam-nas – mesmo que comece a haver ameaças de rebeldia, sobretudo no Sul.
Conte surgiu como solução de recurso em 2018 para liderar o Governo que juntava o movimento 5 Estrelas (que o propôs) e a Liga, de extrema-direita, de Mateo Salvini. Este apresentou uma moção de censura falhada o ano passado, acabando por se demitir do governo. Mas ficou à espreita. Com a crise da covid-19, começou por se opor às medidas mais duras do Governo. Quando Conte determinou um cordão sanitário na Lombardia, a 23 de fevereiro, Salvini chegou mesmo a apoiar a campanha “Milão não para”, da autarquia, que pretendia reabrir restaurantes e museus. Apostou mal. Conte 1, Salvini 0, para já.
quando morrermos todos com o mesmo já não haverá motivo de preocupação. Talvez seja esta a prova: se surgem memes, é porque somos uma cara que importa. O rosto do médico epidemiologista tornou-se “a” figura da crise do coronavírus em Espanha. Desde meados de janeiro que faz capas de jornais, há semanas que faz conferências de imprensa diárias e quando falhou uma, no dia 21, foi notícia só por isso: o que é que aconteceu que o Simón não falou hoje? Nada de especial, mas a ausência notada ilustra como os espanhóis não passam sem ele. O El País descreveu-o assim, há já duas semanas: “É a voz oficial que põe ordem todos os dias numa epidemia imprevisível. A sua tarefa é assessorar os políticos para que tomem decisões, mas os seus argumentos soam demasiado convin
OS GOVERNADORES BRASILEIROS FIZERAM O CONTRÁRIO DO QUE JAIR BOLSONARO QUERIA
centes para que o possam contrariar com ligeireza.”
O médico, de 57 anos, já tinha gerido outras crises, como a do repatriamento dos espanhóis com Ébola. Não leva discursos ensaiados, responde a todas as perguntas. Às vezes diz demais – já lhe aconteceu ter de o reconhecer –, mas mantém o tom, calmo e didático. Está à frente do Centro Alertas e Emergências Sanitárias do Ministério da Saúde há 17 anos. A estação de televisão Cadena SER descreveu assim o seu papel na atual crise: “Converteu-se na pessoa mais escutada deste país – ou pelo menos assim deveria ser.” Na segunda-feira, dia 30, não esteve na habitual conferência de imprensa: testou positivo para o coronavírus.
marechal de guerra. Criou para si uma nova personagem política, numa altura em que já parecia não ter espaço para um novo fôlego – e isso por si pode ser visto como um sucesso. É que, por contraste, antes do coronavírus, era apenas um Presidente desgastado pelos coletes amarelos e acossado por novos protestos relativos à sua proposta para a segurança social. Agora, e segundo um estudo de opinião da estação de televisão LCI, a sua taxa de aprovação subiu 13 pontos percentuais em duas semanas, para os 51% – uma subida desta magnitude é uma raridade estatística. Macron parece ter sabido recriar-se para o novo contexto.
Em julho de 1917, Clemenceau disse: “Em política interna, faço a guerra. Em política externa, faço a guerra.” Parece ser esse o plano do sucessor. Na política externa, Macron tem alinhado com os Estados do Sul na defesa da mutualização da dívida para esta situação excecional. Outra guerra. prensa não poupou nos elogios. O diário económico FD (Het Financieele Dagblad) escreveu que “encontrou o tom e a emoção certa para ser convincente”, e chegou ao encomiástico, com o jornalista político Ulko Jonker a escrever que Rutte se tornou o “melhor primeiro ministro desde a II Guerra Mundial”, ao nível de estadistas domésticos como Willem Drees ou Ruud Lubbers. O AD (Algemeen Dagblad) escreveu que “um bom líder inspira confiança, Rutte fez exatamente isso”.
Dizer que o holandês se tem saído bem na crise do coronavírus pode soar estranho em Portugal, cujo primeiro-ministro apelidou de “repugnante” a atitude do ministro das Finanças de Rutte, por insinuar que os países mais assolados com a crise não se prepararam para ela. Mas essa é uma questão externa. Na política interna, Rutte tem marcado pontos e até essa recusa lhe pode ser favorável. Alguns observadores consideram que retira argumentos à extrema-direita holandesa, que tem peso interno e que foi o único setor a criticar a forma tardia como Rutte tomou as primeiras medidas restritivas e recusou o lockdown total do país, exigindo-lhe medidas mais musculadas. E há eleições legislativas daqui a um ano.
Para trás, ficaram as gafes, que aparentemente não o prejudicaram. Numa conferência de imprensa no dia 11, sobre distanciamento social, acabou a apertar a mão ao diretor do Departamento de Doenças Infecciosas. E oito dias depois, numa volta por um supermercado para explicar que não havia necessidade de açambarcar, garantiu que a Holanda tem papel higiénico suficiente “para fazer cocó pelos próximos 10 anos”.