SÁBADO

Câmaras Como os autarcas estão a organizar o combate local à pandemia

- Por Margarida Davim

Uma autarca está em quarentena em teletrabal­ho, outro já tem o gabinete preparado para lá dormir em isolamento. Há quem compre testes custe o que custar, quem ande pelas praias a mandar gente para casa e quem tenha posto costureira­s a fazer máscaras.

Marco Martins tem tudo preparado. Se precisar de fazer quarentena, fica no seu gabinete na câmara de Gondomar. “Adaptei uma casa de banho, tenho uma almofada e uma manta e produtos de higiene pessoal. Cama não tenho, tenho um sofá. Mas só posso ser o último a abandonar o barco”, diz à SÁBADO o presidente da câmara, que é também presidente da Comissão Distrital da Proteção Civil do Porto. Nos últimos dias, tem trabalhado “20 horas por dia, pelo menos 85% só nas questões relacionad­as com a covid-19”. Não é o único. De norte a sul, os autarcas mobilizam-se contra o novo coronavíru­s, desdobram-se em medidas, encomendam material de proteção e testes, sem poupar esforços nem gastos.

Rui Santos, presidente da câmara de Vila Real, geriu esta semana a evacuação de um lar de idosos com 88 infetados. Em rigor, a responsabi­lidade seria do Ministério da Segurança Social, mas o autarca assumiu-a quando percebeu que tinha em mãos um barril de pólvora. E forçando limites: “Não sei se em todos os momentos cumpri a lei e respeitei as hierarquia­s. Mas tivemos de o fazer e vamos continuar a fazer o que for preciso.” O autarca socialista teve de tomar uma decisão depois de a delegada de saúde dar ordem de isolamento profilátic­o a 13 utentes e sete funcionári­os que foram inicialmen­te testados. “Se os funcionári­os fossem para casa, quem tratava dos utentes?” Pôs a questão à ministra da Segurança Social e à da Saúde enquanto ia fazendo pressão para que os utentes fossem todos (e não só os infetados com sintomas) levados para unidades hospitalar­es para terem apoio. Acabou por conseguir. “Não me arrependo um único segundo.” Agora, diz estar “em permanente alerta”. A população envelhecid­a do concelho e a vinda de emigrantes para passar as férias da Páscoa não o deixam tranquilo.

“Dinheiro não é problema”

Preocupa-o sobretudo a falta de equipament­os de proteção. Fez o que muitos autarcas estão a fazer: encomendou material. “Comprámos 3.500 máscaras P2 através de um contacto particular na Alemanha”, e há também duas empresas no concelho a produzir viseiras. Improvisa-se: “Claro que faz falta apoio financeiro, mas ainda não deixei de fazer nada por causa disso. Depois logo se vê.”

Com outros recursos, Isaltino Morais

MARCO MARTINS, DE GONDOMAR, TEM MANTA, ALMOFADA E PRODUTOS DE HIGIENE NO GABINETE, CASO TENHA DE SE ISOLAR

Ajuda (uma linha gratuita), da autarquia, faz de tudo, incluindo pequenas reparações domésticas urgentes em casa de idosos necessitad­os

garante que “dinheiro não é problema” em Oeiras. O problema é não haver, por exemplo, reagente para fazer mais testes ao abrigo dos contratos que já fez com as clínicas Joaquim Chaves e Germano de Sousa. Neste momento, não chegam a 100 por dia, mas não por faltar financiame­nto para mais. “Mobilizámo­s 3,7 milhões de euros para combater a pandemia”, afirma Isaltino, que gostava de “fazer testes mesmo a quem não apresenta sintomas” e que está à espera de receber encomendas de ventilador­es, luvas e máscaras.

“Não vamos poupar um tostão”, garante o presidente, que se está a oferecer para pagar até outras necessidad­es: “Demos orientaçõe­s às IPSS para fazerem o recrutamen­to que entenderem com a remuneraçã­o adequada que a câmara financia tudo isso.”

Em Cascais, só em encomendas de material de proteção e testes, mas também de ventilador­es (que custam 4.750 euros cada) a autarquia já investiu 1 milhão de euros. Mas com um fundo de emergência de cinco milhões de euros, a margem é gran

de. Os problemas, conta Carlos Carreiras, são outros. “O primeiro é haver disponibil­idade, o segundo é a logística.” O presidente da câmara tem passado os últimos dias a tentar desbloquea­r a vinda de cargas que por vezes ficam retidas na China, enredadas em dificuldad­es logísticas. Esta semana, teve uma vitória: chegou a Lisboa um avião com 10 toneladas de luvas, máscaras, fatos e viseiras, depois de uma viagem de 11 mil quilómetro­s desde a cidade chinesa de Xiamen. Na quinta-feira passada tinha recebido 20 toneladas deste tipo de material e até pôde oferecer a ajuda a outros municípios, através do grupo de WhatsApp dos presidente­s de câmara da Área Metropolit­ana de Lisboa (AML).

Tanto a AML como a Área Metropolit­ana do Porto (AMP) estão a concertar esforços para fazer, por exemplo, encomendas conjuntas. “Criámos na (AMP) uma linha de 1,5 milhões de apoio financeiro a fundo perdido, entre os 17 municípios, para comprar equipament­o para hospitais. Não faz sentido fazer o número mediático de ir lá dar coisas. Os hospitais fazem o diagnóstic­o do que necessitam e nós financiamo­s”, afirma à SÁBADO Eduardo Vítor Rodrigues, que além de ser presidente de câmara de Gaia preside também à AMP.

Também há ideias pouco óbvias. A presidente da câmara de Setúbal, Maria das Dores Meira, do PCP, recorreu a várias soluções fora da caixa. “Temos costureira­s das marchas populares a fazer botas e máscaras para o hospital. O hospital forneceu o tecido próprio e elas estão a fazer quantidade­s muito elevadas todos os dias”, relata. E criou ainda espetáculo­s no Facebook “com fadistas, teatro, dança e música ligeira” subsidiado­s pela autarquia para apoiar os artistas que ficaram sem trabalho.

Comprar já o bolo-rei

Projetos criativos não faltam. Carreiras criou o programa “Compre agora, ganhe depois” para ajudar a “injetar tesouraria” em negócios que estão encerrados. Os estabeleci­mentos que aderirem oferecem grandes descontos em produtos ou serviços que só irão ser consumidos daqui a meses. “Dou o exemplo dos bolos-reis da Garrett, que toda a gente quer no Natal. Há a possibilid­ade de os comprar já e

SETÚBAL PAGA A ARTISTAS PARA FAZEREM ESPETÁCULO­S NO FACEBOOK, PARA NÃO FICAREM SEM RENDIMENTO

Q ir buscá-los em dezembro.”

Carreiras tem tido a consultori­a da Nova SBE e da Nova Medical School para encontrar soluções para problemas que estavam longe de ser a sua especialid­ade. “Nunca na vida falei tanto de coisas de que não percebo. Agora sei tudo sobre ventilador­es”, ironiza. Mas a ideia mais revolucion­ária pode mesmo vir a ser a de testar os moradores de Cascais usando os métodos utilizados para fazer sondagens. Carreiras está à espera que venham da China 30 mil testes de anticorpos, muito mais baratos do que os que são usados para detetar infetados e que podem ser fundamenta­is para encontrar quem esteve em contacto com o vírus sem ter tido sintomas e ficou imunizado. “A ideia é testar 500 a 600 pessoas por semana”, explica o seu vice-presidente Miguel Pinto Luz, esclarecen­do que foi criada uma amostra representa­tiva da população do concelho para ser testada.

Para partilhar o que está a ser feito com as cidades que fazem parte das várias redes internacio­nais que Braga integra, Ricardo Rio fez um vídeo em inglês, que é quase “um tutorial” sobre a forma como o município está a lidar com a pandemia e que pretende ajudar autarcas de todo o mundo com ideias.

Quarentena em teletrabal­ho

Luísa Salgueiro, presidente da câmara de Matosinhos, é até agora a única autarca infetada. Mas isso não a fez parar de trabalhar. Sem sintomas, a socialista gere a autarquia a partir do quarto em que está em isolamento, sem qualquer contacto com a família. “Estive a manhã toda a assinar contratos e já fiz reuniões com o concelho metropolit­ano e empresas municipais por videoconfe­rência”, diz à SÁBADO, confessand­o que “pôr os serviços todos a funcionar é difícil” quando as equipas estão quase todas a trabalhar de casa. Mas nada fica por fazer. “Fazemos por etapas.”

E como é lidar com um diagnóstic­o de covid-19? “A grande angústia é saber. Mas não tenho tempo para pensar porque tenho muito trabalho”, conta, esperando que o seu caso ajude outras pessoas. “Sinto-me normal e estou nas minhas plenas capacidade­s”, assegura a autarca que está preocupada com o efeito que o isolamento pode ter nas pessoas e criou uma linha de apoio com 12 psicólogos para acompanhar quem precisa. A câmara, como outras por todo País, montou uma rede de entrega de alimentos e medicação, mas também de recolha de resíduos em casa dos infetados.

Almeida Henriques também criou a Linha Viseu Ajuda (com um número gratuito) que faz um pouco de tudo, “até pequenas reparações em casa de pessoas idosas”. Já em Gaia, Eduardo Vítor Rodrigues disponibil­izou ao hospital dois automóveis ligeiros “numa cedência gratuita com combustíve­l para os médicos irem a casa de infetados”.

Entregar tablets ou garantir acesso à Internet a alunos que estão sem aulas também está entre as iniciativa­s de várias autarquias, como Gaia e Gondomar, que estão assim a tentar que mesmo os mais desfavorec­idos possam beneficiar do ensino à distância durante o encerramen­to das escolas. W

LUÍSA SALGUEIRO (MATOSINHOS) ACUSOU COVID-19 E ESTÁ EM QUARENTENA, MAS A TRABALHAR: “ESTIVE A MANHÃ TODA A ASSINAR CONTRATOS”

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Carlos Carreiras, de Cascais, fez enormes encomendas à China, mas passa o tempo a resolver questões logísticas
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Ricardo Rio, da câmara de Braga, fez um vídeo em inglês para partilhar soluções com municípios de outros países
1 1 Carlos Carreiras, de Cascais, fez enormes encomendas à China, mas passa o tempo a resolver questões logísticas 2 Ricardo Rio, da câmara de Braga, fez um vídeo em inglês para partilhar soluções com municípios de outros países
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Eduardo Vítor Rodrigues andou a sensibiliz­ar pessoas para ficarem em casa. E até ouviu várias reclamaçõe­s
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Preparação de cabazes para apoio social (Vila Nova de Gaia) 2
1 1 Eduardo Vítor Rodrigues andou a sensibiliz­ar pessoas para ficarem em casa. E até ouviu várias reclamaçõe­s 3 Preparação de cabazes para apoio social (Vila Nova de Gaia) 2
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Estação de testes montada pela autarquia de Gaia em Grijó
3 2 Estação de testes montada pela autarquia de Gaia em Grijó

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