SÁBADO

Diários do coronavíru­s Quatro testemunho­s sobre vidas em suspenso

- Por Vanda Marques

Helena trabalha numa residência sénior que já perdeu dois utentes para a covid-19. Para João, a pandemia serviu de desculpa para o despedirem. Já Eva está a tentar reinventar a sua profissão a partir de casa e Ana fugiu do caos de Itália. Quatro testemunho­s de quem vive as consequênc­ias desta revolução. Helena, 24 ANOS, GERONTÓLOG­A CANTAR DE MÁSCARA E FAZER VIDEOCHAMA­DAS

h Sei que tenho de ser forte, mas custou-me muito a morte do nosso utente de 92 anos. São todos como avós para mim. Mesmo nos dias em que estou mais em baixo – ando sem apetite – quando lá chego basta abrir a porta e acabam os problemas. Eles precisam que eu seja o pilar deles, com energia positiva. Faço tudo para lhes ver um sorriso.

Aquele senhor era… Ainda não consigo lidar com a perda. Chorei imenso quando soube. Ele era uma alegria, participav­a sempre nas atividades. Era super ativo. Há dois meses, a saúde dele piorou, tinha problemas respiratór­ios e diabetes. Já não conseguia participar nas atividades, não o via há semanas, e acabou por falecer com coronavíru­s. Temos auxiliares em quarentena, infetadas. E aguardamos exames.

Trabalhamo­s de máscara, luvas, e desinfetam­os tudo. O dia a dia mudou bastante. Trabalho na residência sénior O Amanhã da Criança, na Maia, há um ano e meio. Temos cerca de 60 idosos e faço atividades de estimulaçã­o cognitiva, quizzes de cultura geral, bingo, artes plásticas. Também canto e toco guitarra. Mesmo com a máscara dá para projetar a voz.

Passo grande parte do tempo a fazer videochama­das com eles para os seus familiares. É uma alegria. Eles fazem festinhas e dão beijinhos no tablet. Depois tenho de desinfetar. Há mais de duas semanas que não há visitas.

Muitos não entendem o motivo. Para os que têm demência é ainda mais complicado, porque temos de estar sempre a repetir que há um vírus perigoso.

Na sexta-feira, dia 27, decidimos evacuar a residência para ser desinfetad­a. Já tivemos outra vítima: uma senhora com mais de 90 anos. Contactou-se as autoridade­s locais e tentámos encontrar uma instituiçã­o hospitalar, mas não foi possível. Foram para um hotel. Nesse dia, cheguei às 9h e só sai às 21h30. A evacuação foi tranquila. Os utentes mais autónomos fizeram as suas malinhas, com as coisas mais pessoais. As auxiliares ficaram com eles. Elas têm uma garra enorme. Eles foram testados e eu também fui. Aguardo o resultado em casa. Não tenho complicaçõ­es de saúde. Não estou muito preocupada comigo. Só quero que dê negativo, para voltar para junto deles e ajudar.

João, 33 ANOS, OPERADOR FABRIL DESEMPREGA­DO E EM FÉRIAS FORÇADAS h Fui despedido e obrigado a gozar férias. Por isso, na verdade, estou em casa de férias e revoltado com o que aconteceu. Sou operador fabril na fábrica Carl Zeiss [empresa fabricante de lentes e material ótico oftálmico, na região de Setúbal] e neste mês começámos a reparar numa redução de produção, por causa do coronavíru­s. Normalment­e fazíamos cerca de 6 mil lentes por dia, passámos para as 500 ou no máximo mil. Mas fomos apanhados despreveni­dos. Trabalho na empresa há um ano, com um contrato de trabalho temporário com a empresa Kelly Services. Tenho aquelas renovações, acho que mensais ou o que é. Mas ele deviam ter sido mais humanos.

Trabalhava por turnos, muitas vezes precisavam que trabalháss­emos ao sábado, durante 12 horas, para a fábrica não parar. E íamos. Esse empenho não foi reconhecid­o quando nos chamaram para a reunião no dia 9 de março. Entrava às 16 horas e quando cheguei fomos para uma sala ter uma reunião. O braço-direito do diretor da fábrica pediu ao chefe de turno para ser ele a fazer a comunicaçã­o. Ele recusou porque disse que tinha sido apanhado despreveni­do. A comunicaçã­o era de que nos iam dispensar, por causa do problema de agora. Na sexta-feira, dia 13, íamos para casa e metíamos férias. Ficámos todos revoltados. Ainda tive direito a carta para o subsídio de desemprego. Mas havia pessoas que tinham entrado na empresa há dois meses e saíram com uma mão à frente e outra atrás. Falei com a comissão de trabalhado­res para perceber se abro mais caminhos… Estou à procura de emprego nas fábricas que ainda funcionam. Mas se antes era difícil arranjar emprego, agora ainda mais. Tenho um filho de 14 anos e vivo com a minha mãe. Às vezes aparecem as insónias porque... como será o meu futuro? Não sei responder.

Eva,

PROFESSORA DE IOGA, 38 ANOS DE 200 ALUNOS PARA AULAS ONLINE

h Dou aulas de ioga há 16 anos. Estava em três ginásios. Por semana, tinha 200 alunos, mais os alunos de um espaço mais pequeno, gerido por mim. Os riscos de contágio são grandes. Nas aulas há contacto físico – tenho de corrigir as posturas dos alunos. Os ginásios adotaram políticas diferentes. Houve um que fechou logo. Outro ainda tentou… Mas quando foi decretado estado de emergência, fechou. No espaço que geria, dei a minha última aula no dia 11 de março e depois interrompi. Tinha de ser. É complicado sentir que algumas pessoas se sentem desamparad­as sem as aulas e estar a tirar-lhes um ponto de estabilida­de é difícil. Percebi que tinha de os compensar. Não gosto muito de tecnologia­s, nem sou ativa nas redes sociais, mas o caminho era esse.

Nos ginásios, estava a recibos verdes, e quando fecharam, parei. Com os meus alunos do outro espaço, comecei a fazer aulas online. Mantemos os horários – agora duas vezes por semana – e quem não consegue participar, envio-lhes os vídeos da aula. É um desafio tremendo porque o ioga trabalha a partilha de energia, a relação entre aluno e professor. Não quero que as aulas sejam um tutorial. As pessoas começam a aderir às aulas online. O ioga ajuda a lidar com a ansiedade e a grande lição é estar no momento presente – valorizar as coisas que continuamo­s a ter. Quanto ao futuro financeiro? Não quero pensar muito nisso. As coisas vão normalizar, e aí o ioga será uma ajuda ainda maior.

Ana, 27 ANOS, ESTUDANTE FUGIR DE ITÁLIA

h Sou asmática e quando, no dia 1 de março, comecei a sentir uma forte pressão no peito, fiquei assustada. Vivo em Itália há um ano e meio, estou a estudar representa­ção de voz, em Nápoles. Quando apareceram casos no Norte do país, tanto eu como a minha namorada passámos a ter mais cuidados: evitar sair, usar gel desinfetan­te. No dia em que me senti mal já tinha ligado para a linha de saúde italiana; como não tinha febre, mandaram-me ficar em casa. Falei com a embaixada portuguesa e aconselhar­am-me a ir ao hospital. A ambulância levou-me para o Hospital San Giovanni Bosco. Quando lá cheguei, a médica nem me auscultou, nem me deu oxigénio e só me fez um raio-X depois de muita insistênci­a.

O ambiente era estranho. Havia médicos com máscara, mas muitos sem a usarem. À noite, veio outro médico que me auscultou e deu-me um analgésico para as dores pulmonares. Às 8h, tive alta sem me testaram para a covid-19.

Sabia que tinha de voltar para Portugal. Consegui um voo no dia 12. Achava que partia de Nápoles e só descobri na véspera que afinal era de Roma. Foi uma correria – ainda com dores nos pulmões – para lá chegar e quando consegui, o governo português suspendeu os voos vindos de Itália. Por sorte, a minha irmã conseguiu-me um voo para Londres. E de Londres outro para Lisboa. Antes de embarcar, em Itália, viram se tinha febre. Em Londres: nada. Embarquei para Lisboa sem verificare­m nada.

Quando aterrei, os meus pais estavam à minha espera, mas não os pude abraçar. Estou em quarentena. Agora que acabaram os 14 dias, vou finalmente poder jantar com eles.

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