JOÃO PEDRO GEORGE
A EXPULSÃO VIOLENTA
e ruidosa de ar dos pulmões, que se realiza pelo nariz e pela boca, mediante um movimento involuntário e repentino do diafragma, a que chamamos “espirro”, nunca obteve tanta atenção como agora.
Até há algumas semanas, o acto de espirrar estava ausente do pensamento contemporâneo. Não interessava nada. Era uma coisa vulgar, desprovida de transcendência. As pessoas espirravam só por espirrar.
Hoje, por causa do insuportável coronavírus, o espirro já não deixa ninguém indiferente, é novamente merecedor de múltiplas reflexões. Por conseguinte, uma pergunta se impõe: de que falamos quando falamos de espirros?
Em primeiro lugar, o espirro é muito mais do que um impulso do organismo para limpar as fossas nasais e as vias respiratórias de partículas irritantes e substâncias estranhas. É um dos veículos mais eficazes para a transmissão de bichos notabilíssimos, como os germes, as bactérias e os vírus.
Um único espirro do nariz – esse lugar escuro que dá para galerias, túneis e pântanos cheios de monstros invisíveis – pode ser mais perigoso que os ensaios nucleares da Coreia do Norte. Capaz de expelir entre 40 e 80 mil gotas de saliva e muco, que podem atingir uma velocidade de 150 km/hora, alcançar uma distância de oito metros, espalhar-se por uma área de dois metros quadrados e ficar algum tempo em suspensão, o espirro é o meio de transporte ideal para o bicho mais manhoso deste mundo (o coronavírus) deslizar para o nosso interior e nos transformar numa arma de destruição maciça.
Espirrar não é, portanto, insignificante. Suscita estados de tensão. Gera desconfiança e suspeição. Põe-nos à defesa, com medo de que o vírus chegue a todos os lados. Assusta-nos o espirro que não sabemos de onde veio, ficamos aterrados, tentamos localizá-lo, imaginamos colónias inteiras de coronavírus flutuando no ar, à nossa volta.
No momento actual, sombrio e difícil, cheio de dúvidas e interrogações, não podemos evitar certa perturbação em presença dos espirros. Fugir deles tornou-se uma questão crucial, um exercício necessário de sobrevivência, e a forma como espirramos um elemento determinante do nosso comportamento social e da nossa grandeza ou pequenez moral.
O indivíduo que espirra correctamente, para a parte interior do braço, com o cotovelo fletido, transformou-se num herói civilizador. Já o sujeito que espirra para as mãos ou projecta para o ar as excrescências do seu nariz é um sociopata, um idiota cultural que merece comer o pão amargo da prisão.
De facto, os espirros ensinam-nos muitas coisas sobre a alma humana. Por essa razão, tanto as religiões monoteístas como as politeístas sempre manifestaram um particular interesse por eles. Um exemplo básico encontramo-lo na Bíblia: quando saiu do Jardim do Éden, a primeira coisa que Eva fez foi dar um espirro, o que de imediato foi visto (com carradas de razão) como um presságio do destino duríssimo da nossa espécie.
Na Antiguidade, acreditava-se que quando espirramos a alma deixa por momentos o corpo (por esse motivo chamavam ao espirro “pequena morte”), o que era perigoso, pois o espirro deixava um espaço vazio dentro de nós que podia ser ocupado pelos maus espíritos. Alguns filósofos latinos permitiram-se discordar e vieram depois dizer que o espirro era precisamente uma tentativa do corpo para deitar fora os espíritos que se tinham introduzido nele
lhe fazer mal, pelo que não era recomendável contê-lo, mantendo o nariz e a boca fechados.
Tanto os gregos como os romanos sabiam que o espirro indicava desordem física e podia estar relacionado com alguma doença fatal, daí que olhassem piedosamente para quem espirrava e dissessem em voz alta, dando-lhe uma palmadinha nas costas: “Que Júpiter te guarde, pois não podemos fazer nada por ti!”
No século VI, para evitar justamente as más consequências do espirro, numa altura em que Itália estava a ser atacada por uma epidemia, cujo sintoma principal era o espirro persistente, o Papa Gregório I instituiu o costume de dizer “Que Deus te bendiga” a quem espirrava. Desta fórmula derivou o costume actual de dizer “Santinho” ou “Jesus”.
As pessoas eram tão supersticiosas que caso ouvissem alguém espirrar no exacto momento em que se estavam a levantar e a calçar os sapatos, voltavam imediatamente para a cama, por o terem como sinal de péssimo agoiro. Na verdade, o melhor momento para espirrar era ao sábado, durante as primeiras horas da tarde: indicava sorte ao amor e virilidade sexual (inventei isto agora mesmo).
Para alguns povos antigos, espirrar era, pelo contrário, uma coisa decente, um sinal de que os deuses nos são favoráveis (muito mais do que para aqueles que levavam com o espirro em cima), por isso se aplaudia sempre que alguém espirrava. Outros tipara nham o espirro como o momento ideal para os homens pedirem em casamento uma mulher ou para fecharem um negócio.
Segundo um provérbio árabe da época dos mitos do Dilúvio, o gato é o espirro do leão, criado por Deus para controlar as pragas que infestaram a Arca de Noé. Entre os persas e outros povos do Médio Oriente, quando se falava de um morto e alguém espirrava, aquele que estava a usar da palavra interrompia o discurso e tinha de exclamar: “Glória a Alá.” Se não o fizesse, podia cair fulminado.
Noutras culturas, acreditava-se que se alguém dava um espirro enquanto palrava, isso era sinal de que estava a dizer a verdade. E entre os judeus religiosos existe ainda o costume de responder ao espirro com a palavra hebraica emet (verdade), pois quando estamos a falar e de repente espirramos, tal significa que Deus aprova ou corrobora o que acabámos de dizer.
Muitos andaluzes estão convencidos de que o espirro de um recém-nascido é sinal de que ele terá sorte na vida e gozará sempre de boa saúde. Na Índia e no Paquistão acredita-se que quando alguém espirra é porque se lembrou de alguém querido, ou foi lembrado por ele. No Japão, é sinal de que alguém está a falar da pessoa que espirrou. E em alguns locais do México julga-se que quando um homem espirra isso quer dizer que a sua esposa lhe está a ser infiel. Com a psicanálise, verificámos, espantadíssimos, que o espirro significa que invejamos o pénis do nosso cunhado (mesmo que preferíssemos usá-lo na irmã dele…).
Ultimamente, porém, os espirros não têm graça nenhuma. Agora, de cada vez que um nariz se põe em erupção, queremos logo verificar se o dono do espirro está à famosa distância dos dois metros e não nos condenou a uma ingestão massiva de coronavírus. Mentalizem-se: espirrar nunca mais será a mesma coisa. W