Quarentena pela democracia
Ao fim de 15 dias de quarentena e estado de emergência, começamos a despertar lentamente para as graves consequências deste pesadelo que vivemos. Não sabemos quanto tempo mais vai durar e desconhecemos a amplitude das consequências sanitárias, económicas, políticas e sociais. Não temos sequer uma verdadeira noção sobre até onde vai a pandemia, sobre o número de vítimas mortais que ela vai fazer, quando haverá uma vacina e como ficarão os sistemas de saúde.
A ideia de que podíamos estar perante uma crise sanitária transitória e que no verão tudo voltaria ao normal tem-se esvanecido dia a dia. Por outro lado, não sabemos como vamos sair desta crise sanitária mas, a cada dia, vamos confirmando que será com uma economia de rastos.
A ideia, quase festiva, de que a quarentena se podia fazer um pouco como se fosse um período de férias mais virado para a família, com uns petiscos, muita televisão e séries, umas voltinhas de carro pelas praias ou marginais, dá a dimensão ilusória de como muitos de nós encaram um dos momentos mais sérios, mais delicados e graves que qualquer nação pode enfrentar. Para já não falar nas filas de carros na ponte 25 de Abril ou nas passeatas nas marginais à beira-rio ou junto ao mar.
Os estados de exceção costumam ser, na história, uma exceção política e legal de quem manda para consolidar um poder e esmagar as liberdades e a individualidade de cada um de nós. Muitas vezes instaurados, de resto, sobre a alegada incapacidade do povo para se organizar e conviver pacificamente…
Na ideia do controverso mas lúcido filósofo alemão Carl Schmitt, a soberania é, aliás, o poder de decidir a instauração da exceção. Mas essas eram ideias muito marcadas pela história da primeira metade do século XX.
Hoje, essa tensão entre legalidade e legitimidade política manifesta-se, não como nesses anos dos fascismos, populismos, comunismos e nazismos, mas em democracia e com outros traços identitários. Os torpes Bolsonaro, Trump ou Orbán, entre outros, são exemplos dessa manipulação da democracia para fazer valer, sistematicamente, a exceção sobre a regra, o particular sobre o coletivo, o interesse pessoal sobre o interesse geral.
Não é o nosso caso. Temos uma democracia madura, instituições fortes, pluralismo político e de opinião, liberdade de expressão e de informação, tribunais democráticos e cada vez mais escrutinados. Temos tido, também, uma liderança política e técnica segura e corajosa na forma de enfrentar esta crise. Isso não implica, no entanto, que esteja isenta de críticas e de um severo escrutínio sobre o que diz, faz e decide. Há questões que estão naturalmente adiadas. Não é em cima de uma crise de dimensões bíblicas que se faz um debate sobre o Estado de Emergência ou o Serviço Nacional de Saúde. Apenas pela razão de que não ajuda, em nada, no auge do combate, a obter bons resultados. Mas essas discussões são essenciais logo após a vitória sobre o vírus. É essencial discutir e decidir sobre as funções do Estado que queremos. Se é um Estado que, na visão liberal, protege os negócios, ou na visão social-democrata protege os cidadãos
e os seus direitos essenciais de saúde, educação, segurança e proteção social. Se protegemos os velhos ou os abandonamos em lares. Se protegemos os doentes ou os abandonamos nos corredores dos hospitais. Se nos protegemos dos vírus ou continuamos a pensar que é um problema chinês, do Oriente em geral ou de África. Essa visão eurocêntrica sobre questões sanitárias emergentes, como o coronavírus, é que nos trouxe aos dias tenebrosos que estamos a viver.
Tais como são essenciais, todas as perguntas dos jornalistas, por mais insolentes que possam parecer, sobre a estratégia e as prioridades do Governo e das autoridades sanitárias, que passam por testar, isolar, proteger e tratar. Só respondendo a perguntas incómodas é que António Costa e os seus ministros poderão continuar a dizer que a democracia não se suspende no estado de emergência.
Se não faltassem testes em Portugal teríamos certamente outro tipo de abordagens à pandemia. E, porventura, números diferentes, para pior, nesta fase de progressão para o pico. A polémica criada em torno dos testes e do restante material tem sido essencial para acelerar processos de fabricação e compra. Tal como tem sido essencial para acelerar as medidas em relação aos lares de pessoas mais velhas o facto de a agenda mediática ter colocado foco nessa urgência, sobretudo a partir do que se está a passar em Itália e Espanha.
O essencial, por isso, quando enfrentamos mais 15 dias de quarentena, é não ceder ao medo. E ter a noção de que esta prolongada quarentena faz parte de uma luta sem quartel pela saúde e pela democracia. Para que não tenhamos um dia de lutar pelo que é evidente e deveria ser adquirido, como a liberdade, a decência social e a própria democracia.
Morte no aeroporto
O estado de emergência não suspende a democracia. Mas nos serviços do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) no aeroporto parece que sim. A demissão dos responsáveis do SEF devido à morte de um cidadão ucraniano no aeroporto, alegadamente espancado e torturado até morrer, não chega para esclarecer o episódio. É preciso uma investigação judicial rigorosa, sem mácula, e uma discussão política muito séria sobre o episódio. Portugal, se é um País que preza direitos fundamentais, não pode fazer deles letra morta, assassinando pessoas à entrada ou saída das nossas fronteiras. Que polícia de imigração é esta? W