SÁBADO

Mécia de Sena (1920-2020)

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Foi a viúva “prodigiosa” de um dos mais importante­s escritores portuguese­s do século XX. Nunca esteve por trás de Jorge de Sena, mas sim ao seu lado

Se eu viver depois de ti, querido, o que não desejo, a tua obra será para mim como uma Bíblia para o mais fervoroso crente, e podes ter a certeza de que fica bem entregue.” Assim escrevia Mécia de Sena em carta enviada ao futuro marido, Jorge de Sena, em setembro de 1948. Iam casar um ano mais tarde e provavelme­nte nunca imaginaria­m que, apesar de terem apenas um ano de diferença, Mécia seria viúva por mais de 40 anos.

A partir de 1978, Mécia de Sena fez tudo o que esteve ao seu alcance para nunca deixar que a memória do marido caísse no esquecimen­to. Além de cuidar dos nove filhos que tiveram em conjunto, tornou-se a curadora da obra de um dos mais importante­s poetas portuguese­s do século XX.

Deu guarida a dezenas de estudiosos da obra de Sena (chegando a cozinhar para mais de 15 de cada vez), escreveu prefácios, colaborou na reedição das obras completas e organizou a correspond­ência do marido. Chegou mesmo a permitir que fossem publicadas algumas das cartas que trocou com o autor de Metamorfos­es, em 1982, quatro anos depois da morte do poeta. Mas o espólio de cartas entre ambos é muito mais profundo do que aquilo que ficou conhecido nas duas coletâneas editadas até agora, garantem os estudiosos. Cultivador do erotismo como era Jorge de Sena, conseguimo­s corar apenas de imaginar o que podem conter aquelas cartas trocadas entre os dois amantes.

Mécia de Freitas Lopes nasceu em Leça da Palmeira, a 16 de março de 1920. Era filha do músico e compositor Armando Leça e da violonceli­sta Irene Freitas e irmã do crítico literário Óscar Lopes.

Em 2013, contava ao Jornal de Letras como tinha sido o seu primeiro encontro com aquele que viria a ser o seu marido. O conhecimen­to foi travado num baile na Faculdade de Farmácia do Porto. Mécia, sempre afim de bailar, aceitou o convite de um jovem lisboeta. “Não é meu hábito dançar com desconheci­dos”, terá dito de início.

Jorge de Sena terá respondido:

“Tem toda a razão, desculpe-me.

Mas sendo de Lisboa e não conhecendo ninguém no

Porto, como poderei algum dia dançar a não ser com uma desconheci­da?” A partir dessa resposta edificou-se uma relação de cumplicida­de e amor que duraria muito além da morte dele. E o encanto pelo parceiro de dança foi tal que nem se lembrou de lhe perguntar o nome. Mas quando o voltou a ver, não se fez rogada e foi ao seu encontro.

Nunca mais se largaram.

CONHECERAM-SE NUM BAILE NA FACULDADE DE FARMÁCIA DO PORTO. MAS ELA NÃO QUERIA “DANÇAR COM DESCONHECI­DOS”

Mécia chegou a dar aulas, mas abdicou da profissão para cuidar da família que constituiu com Jorge de Sena.

Dos nove filhos que tiveram, alguns nasceram em Lisboa, outros já no Brasil, para onde o casal se exilou devido à ditadura de Salazar. Curiosamen­te, iriam depois para os EUA como forma de fugir à ditadura instaurada no Brasil em 1964. Fixaram-se na Califórnia e ali morou Mécia até ao fim da sua vida, onde leu, cuidou e escreveu incessante­mente sobre a obra do marido. Pouco dada a mitos, no prefácio que escreveu para Sinais de Fogo, romance edificante do século XX português, Mécia desmentia ser a inspiração para “Mercedes”, o interesse amoroso da personagem principal. “Para quem pretenda ver-me na Mercedes (...) não, não sou o modelo e nunca me ocorrera perguntar-lhe [a Jorge de Sena] quem era.” A edição da obra de Jorge de Sena está já há alguns anos a cargo de uma das filhas de Mécia e de Jorge, Isabel de Sena. Resta agora saber se algum dia verão a luz do dia Flashes, o conjunto de fragmentos de diálogos que Mécia foi mantendo com Jorge de Sena e dos quais se conhecem pequenos excertos, mas que, quem os leu, garante serem de uma altíssima qualidade literária. Mécia de Sena morreu na Califórnia, poucas semanas depois de completar 100 anos. Nunca deixou de cumprir a promessa de devoção total ao marido e à sua obra. W

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LUIS GRAÑENA

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