VÁ LÁ À SUA VIDA
Mesmo com mais de 100 pessoas mortas e milhares de infetados a lutar pela vida, a grande preocupação que varre as redes sociais é “como é que eu faço exercício em casa?”
Isto não tem salvação
o político com mais defeitos do panorama português. Mas é um tipo sensato. E se António Costa transpira otimismo, como até Marcelo Rebelo de Sousa já referiu, o presidente do PSD prefere a cautela e a prudência. Ambas, no atual contexto de pandemia mundial, são essenciais para o presente e para o futuro do País, se acharmos que isto tem futuro.
Muito provavelmente, não terá. Por várias razões. A primeira, e talvez a mais importante, prende-se com o “ser português”, com o modo de vida dos cidadãos que, ao contrário do que rezam as lendas, tem tudo menos solidariedade, altruísmo, preocupação com o próximo. Pelo contrário: a crise da covid-19 trouxe ao de cima o egoísmo lusitano, exacerbado por um suposto poder de compra que nunca existiu e pela promessa de uma felicidade duradoura.
É impossível recuperar um País – entendido como um todo, uma comunidade de seres humanos que se relacionam entre si e não apenas um gráfico com PIB, importações e exportações – sem uma participação ativa dos cidadãos que, em vez da abstenção, se empenhe civicamente, por exemplo, na definição de uma estratégia nacional para o Serviço Nacional de Saúde e não se limite a vociferar quando, por um qualquer acaso, não foi devidamente bem tratado por um médico ou enfermeiro ou até por quem, nesse dia, estava na receção.
Não há salvação para um País em que mais de 50% dos eleitores preferem desfrutar das montras de um qualquer centro comercial ou a esplanada de uma praia, mesmo que para isso tenha de fazer uns bons quilómetros, do que exercer o seu direito (e dever) de voto.
Este espírito egoísta do português ficou bem latente no início desta crise, com a corrida ao açambarcamento de mantimentos ou, mais recentemente, com as passeatas domingueiras. Num tempo em que ninguém se pode queixar de falta de informação, o que leva centenas de pessoas a insistir num comportamento de risco? Estupidez e egoísmo.
Isto não tem salvação. Mesmo depois de uma crise como a atual, que já matou mais de 100 pessoas, a grande preocupação que se vê por aí – nessa praça pública virtual que dá pelo nome de redes sociais – é “como é que faço exercício em casa?”. Como se a grande preocupação perante uma pandemia mundial fosse “como é que eu posso ser internado ou mesmo morrer em forma?”. O grau de estupidez campeia de tal forma que o desejo de muita gente deve passar por fazer uma selfie com um ventilador, erguendo-se assim à condição de influencer.
Não, meus caros, este País não tem salvação. Porque, a seguir à catástrofe do vírus, seguir-se-á uma forte crise económica, muito provavelmente com despedimentos e falências. Uma vez mais, a solidariedade será necessária, mas continuaremos todos mais preocupados em escolher um local para férias, “depois de um ano terrível”, do que em olhar para quem está ao nosso lado. O português até pode olhar e mostrar-se solidário desde que alguém tenha um telemóvel ligado para registar o momento nas redes sociais. A cidadania, atualmente, é um mero simulacro. Pela janela das redes sociais espreita-se o admirável mundo da quarentena profilática: os livros, as séries, os filmes, o workout do dia. Ninguém tem roupa para lavar e passar a ferro, louça para arrumar, casa para aspirar ou para limpar o pó, ou crianças para entreter e cuidar durante 24 horas. Tal como a vida real, a quarentena profilática também subiu ao palco da encenação. Como se mais de 100 mortos e mais de sete mil pessoas infetadas com um vírus fosse um mero cenário nas nossas vidas. W