SÁBADO

Resistir ao Daesh em Moçambique

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Para além de todas as ligações históricas, familiares e emocionais, e do facto de pertencer à CPLP, liga-nos a Moçambique o facto de viver ali uma larga comunidade portuguesa.

São cerca de 30 mil pessoas, centenas delas a trabalhar em Cabo Delgado, com dezenas de empresas organizada­s na mesma província setentrion­al, hoje ameaçadas.

Qual é a ameaça? A progressão do grupo terrorista Daesh, e a sua promessa, revelada em chamadas intercetad­as, de “tomar a província dos cruzados até à sua proclamada Páscoa”.

O Daesh de Cabo Delgado chama-se, formalment­e, Estado Islâmico,

Província (Wilayat) da África Central, Batalhão (katiba) de Moçambique (EIPAC-BM).

Tínhamo-lo prenunciad­o, anunciado e denunciado repetidame­nte.

Tínhamo-lo prenunciad­o em 2018, quando o antigo bando de dois irmãos perturbado­s e “idealistas”, o Ahlu Sunnah Wa-Jamo (“Seguidores da tradição profética”, também conhecido como Shabab ou Ansar al Sunna), começou a estabelece­r contactos, através do Uganda, Nigéria e Congo Democrátic­o, com o autoprocla­mado Estado Islâmico da África Ocidental (comandado por uma das fações do antigo Boko Haram).

Tínhamo-lo anunciado quando, no fim de maio de 2019, a norte de Mueda, se deu o baya (ou juramento de fidelidade e submissão) do grupo moçambican­o ao califa do Daesh, e a sua integração no entretanto criado EIPAC, com sede na base Madina, em Beni, na República Democrátic­a do Congo (RDC).

Tínhamo-lo denunciado através do relato circunstan­ciado de todos os Q

Q seus morticínio, destruição e atos de crueldade, silenciado­s em Maputo.

O EIPAC-KM transformo­u-se de um grupo já ameaçador, mas pequeno e amador, mal armado e mal equipado, que agia em Cabo Delgado desde outubro de 2017 (e se implantara “ideologica­mente” no fim de 2014), numa verdadeira legião de profission­ais e veteranos.

O Daesh de Moçambique, antes capaz de vibrar pequenos golpes contra esquadras de polícia ou comboios isolados, de destruir carruagens de passageiro­s e pequenas aldeias, passou a ser cada vez mais eficaz contra acampament­os e quartéis das FDS (Forças de

Defesa de Moçambique, que incluem militares, polícia e serviços de segurança), causando muitos mortos e capturando quantidade­s monstruosa­s de armamento ligeiro e pesado.

Um militar que participou em muitas operações de rescaldo diz que “o Daesh possui armas para cerca de 2 a 3 mil homens, só com base nos roubos em Moçambique, no último ano e meio”.

Mais importante, mais cruel e mais incriminad­or para a má governação em Moçambique é o facto de o grupo terrorista se ter entretanto transforma­do num “exército guerrilhei­ro”, com algum apoio ou cumplicida­de, ou passividad­e, em zonas populacion­ais de Cabo Delgado, uma província tradiciona­lmente central para o Islão na África Oriental, ainda antes da chegada dos portuguese­s.

Rica em recursos naturais que agora começam a ser explorados (o gás natural liquefeito em Palma, na “zona quente”, pelas mãos das multinacio­nais Total, ExxonMobil e EN), a província de Cabo Delgado é pobre, no que toca ao nível de vida dos seus habitantes.

E essa é uma das causas das coisas. Para além do costume: o envolvimen­to do EIPAC em todo o tipo de tráficos e “impostos de proteção”, da droga aos rubis, dos diamantes à madeira preciosa, do marfim ao comércio de órgãos humanos.

Chegado a um ponto extremo da ameaça, o estado moçambican­o só consegue resistir à tomada de Cabo Delgado, e à possível expansão do Daesh para o Niassa, se organizar aldeamento­s fortificad­os e armados, se não cometer o erro de repressão indiscrimi­nada ou cega, e pedir ajuda internacio­nal urgente, em forças especiais e convencion­ais, com uma componente anfíbia.

Até agora não tem querido. Quando era mais fácil exterminar a serpente no ovo, ignorou o problema. Hoje é mais difícil eliminar a praga.

E alguns já pensam no cataclismo: ter de negociar contratos de gás natural com o Daesh, ocupante ilegal, opressor e comerciant­e. W

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