SÁBADO

As nossas almas ardem como cigarros

- Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

ardem como cigarros, mas não as atirem já ao chão. O que é um homem sem se mexer? Aguarda. Aguarda pela oportunida­de de se mover, dando sentido ao que faz, ao que deixa de fazer, ao que gostaria que fosse feito. No autoexílio, desesperam­os – quem disser que não desespera, mente. E logo a si próprio, que é a pior forma de faltar à verdade. Sabemos que o mundo condena os mentirosos que nada mais fazem do que mentir, e recompensa os poetas, que só mentem sobre as coisas importante­s. Ambos perceberam que terminou a imperial na esplanada, findou-se o vento de Verão, e a frescura da água vai evaporando, gotícula a gotícula (as malditas gotículas). Desejamos secretamen­te sevícias, penitência­s, o hara-kiri. Quantas vezes se pode ser original num sofá?

Há quem tenha a vida facilitada. Quando se é obsessivo, lavar as mãos 30 vezes por hora é uma banalidade, o cumpriment­o de um dever face a ancestrais desequilíb­rios químicos. As obsessões são o que conheço melhor, e os velhos amigos não se desprezam. Depois, quando se é misantropo, mais do que duas pessoas é uma dispensáve­l multidão. Mas acordo agarrado ao sonho dos jantares que não dou, dos almoços a que falto, das saudades do que jamais farei. Estamos cheios de medo de duas doenças: o minúsculo filho da mãe e o grande risco da loucura. Fazem-se máquinas de roupa como robôs, lava-se a louça em transe, marca-se o ponto no discreto bunker a que chamávamos casa. Já não oé.Éoendereço mais improvável da nossa prisão. As nossas almas ardem como cigarros, mas não desistam ainda.

Quando nos sobra um minuto sozinhos, ao fim da noite, porque a mulher dorme com ternura, os filhos desfalecer­am e os pais repousam no melhor bairro azul que lhes conseguimo­s garantir, pensamos estar a salvo do tédio. É aí, nesse falso suspiro, com os olhos em paisagens a milhares de quilómetro­s, que percebemos a falta das 16 horas anteriores. Dos bocejos, das cismas, do mau feitio, da monotonia afiada como um diamante. É então, quando não aguentamos mais, a gritar à janela pelo abraço de um desconheci­do, ansiando a glória, hoje perdida, de estarmos perdidos na multidão, que percebemos: são os detalhes mais íntimos que nos vão salvar. W

muito O coronavíru­s tem de ir para para longe, para cima das nuvens, porque não nos fazer mal. Ele é mau ficar em mata pessoas. E eu tenho de faço casa, protegida dele. Em casa e pinturas, brinco com os puzzles já jogo ao Bimi Boo no iPad. Também com a fiz crepes, panquecas e bolos Às vezes minha mãe e a minha irmã. Agora vejo a Netflix e o Canal Panda. está a dar o Boss Baby.

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4 ANOS, PORTO 9 ANOS, BALEIZÃO, BEJA
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