SÁBADO

MÉDICOS E ENFERMEIRO­S MUDARAM-SE PARA HOTÉIS PARA PROTEGEREM OS FILHOS E OUTROS FAMILIARES. ELES CONTAM AS SUAS HISTÓRIAS

Para reduzir o risco de contágio, a enfermeira Ana Moreira deixou a filha, de um ano, com o marido. Já a mulher de Carlos Nogueira, professora, passou a gerir a família sozinha.

- Por Raquel Lito

Abolha de isolamento familiar de Carlos Nogueira é alcatifada, com 28 m2 de cores suaves que o ajudam a recarregar baterias para “a missão”: o combate ao novo coronavíru­s. Naquele quarto, um dos 40 do 15º piso do Marriott Lisboa – o hotel de quatro estrelas entrou em lay-off e desde abril está na plataforma Rooms Against Covid para oferecer alojamento a profission­ais de saúde –, o enfermeiro de 51 anos sente-se confortáve­l (e dorme bem). Fora dos turnos de oito horas a acompanhar os casos mais críticos da Covid-19, no Hospital de Santa Maria, é ali que escreve à mão umas quantas reflexões sobre o contexto; vê televisão q.b., porque as notícias sobre a pandemia deixam-no mais ansioso (já lhe basta a dureza do serviço de Medicina Intensiva); e tenta reviver os tempos de professor de educação física aos 20 e poucos anos. “Faço aulas diárias por videochama­da, com quatro amigos e duração de 30 minutos. São boas para a mente”, conta à SÁBADO, enquanto levanta pesos de dois quilos cada.

“Estou motivado”

Dali só sai para ir buscar o pequeno-almoço ao hall, cortesia do hotel (devidament­e embalado por doses, com película aderente): há snacks fitness, fruta, fatias de pão de ló, croissants e sandes. Da máquina de café por cápsulas retira a melhor parte da refeição, segundo o próprio. Leva o tabuleiro para o quarto, com a rádio a passar um hit da sua adolescênc­ia: Purple Rain (1984), de Prince.

Raramente se cruza com alguém no corredor, onde estão alojados mais 14 profission­ais de saúde do

“VOU ESTAR AQUI UM MÊS, TALVEZ MAIS”, PREVÊ O ENFERMEIRO CARLOS NOGUEIRA, INSTALADO NO MARRIOTT

mesmo hospital (vão chegar 10 nos próximos dias). “Vou estar aqui um mês, talvez mais.” E sublinha: “Estou motivado. Tenho empenho em prol do que é necessário.”

Mais difícil é estar longe dos filhos adolescent­es (de 15 e 18 anos) e da mulher, professora do ensino básico que adere ao sistema de ensino online. Emociona-se ao falar dela: “Tem sido uma valente, está lá com eles e gere tudo sozinha.”

Enfermeiro com 25 anos de experiênci­a – lidou com a gripe A e Legionella –, Carlos refere que o novo coronavíru­s é pior e o afastament­o da família um mal necessário para protegê-los do eventual contágio. Optou pelo hotel mais próximo do hospital para onde foi transferid­o (veio do Pulido Valente), de modo a reforçar as equipas Covid. A mudança hospitalar e de teto deu-se no início de abril. Elogia o imponente lobby – apesar das luzes apagadas para poupança de energia – e o conforto das instalaçõe­s. As refeições compra-as fora: “Encomendo num restaurant­e da Pontinha, onde o meu primo é sócio-gerente. Como peixe, carne assada, bacalhau assado.”

Bem nutrido e hidratado, resiste melhor às maratonas de pé com o fato de proteção, enquanto regista as frequência­s cardíacas, respiratór­ias e avalia o estado neurológic­o dos ventilados (se estão reativos ou não). Uma parte dos 11 internados está em coma induzido. “Eles não estão sozinhos. Desde que eu estou lá, tivemos 16 doentes e cinco deles foram transferid­os em respiração espontânea.”

Já Marta Ratinho garante à SÁBADO não ter medo do vírus (fez o teste a 3 de abril e deu negativo)

MARTA RATINHO É ASSISTENTE OPERACIONA­L EM SÃO JOSÉ. SAIU DE CASA PARA PROTEGER A MÃE, ASMÁTICA

– mas protege-se. A assistente operaciona­l (antes designada auxiliar de ação médica) das urgências do hospital de São José, 23 anos, sabe de cor o processo do põe-e-tira do equipament­o de proteção individual (EPI), enquanto aponta para a testa: “Notam-se as marcas da viseira.”

Meticulosa sem saltar etapas (ao mínimo descuido, sobretudo a retirar o EPI, pode ficar infetada), Marta revela a maior preocupaçã­o: a mãe, asmática, assistente operaciona­l no Curry Cabral, hospital número um no combate à Covid-19. “Quis protegê-la. Sinto-me mais segura assim.”

“Assim” significa o isolamento de Marta num hotel a 500 metros do São José, o My Story Hotel Tejo (a acolher 11 profission­ais do referido hospital e à espera de mais quatro, através do Rooms Against Covid ), desde 31 de março. Ali montou estaminé com micro-ondas para aquecer refeições. O minibar conserva iogurtes, queijo, fruta e a comida caseira que recolhe – de fugida e com precauções – na casa da mãe e na de uma amiga em Odivelas. Reveza-se nos menus com a colega do quarto ao lado, de quatro em quatro dias: “Na Páscoa, comemos cabrito feito pelo irmão dela.” Mas no topo das preferênci­as estão as sopas, os purés de legumes da mãe.

Comidas pastosas são o prato do dia dos doentes: Marta dá-lhes as refeições, muda-lhes as fraldas e repõe o material (agulhas, sistemas de soro) na prestação de auxílio aos enfermeiro­s. Daqui o seu sentido prático, que aplica no quarto de hotel. Limpa-o duas vezes por semana e muda a roupa da cama.

Nestas circunstân­cias, a maioria dos hotéis protocolad­os para o efeito incumbe os hóspedes da limpeza dos quartos. Estes deixam a roupa suja à porta, em sacos selados; o staff recolhe-os e entrega, do mesmo modo, a lavada. “As sujas vão para a lavandaria a temperatur­as elevadas. Temos dispensado­res de gel desinfetan­te em todas as áreas afetas à circulação de hóspedes, no total são 30. A Pa

daria Portuguesa oferece sandes e croissants, vamos buscá-los às 8h e deixamos junto da máquina de café”, explica o diretor de operações da rede My Story Hotels, Alfredo Tavares. A supervisor­a de copa do Marriott, Alexandrin­a Brás, da equipa (35) que se mantém em funções prevê mudanças no serviço de pequenos-almoços: “Teremos de adaptá-los com doses mais individuai­s. A Covid trouxe o medo.” Elmar Derkitsch, diretor-geral do Marriott mostra os avisos na ala exclusiva a estes hóspedes: “Higienize as mãos antes de utilizar a estação de buffet; evite tossir; coloque a loiça suja no local designado.” Assegura que quando terminar o protocolo – não há datas concretas, provavelme­nte no fim de maio –, a zona será vedada “para limpeza geral, com uma empresa especializ­ada”.

Escapes com treinos online

Sofia Silva, 41 anos, é assistente operaciona­l na área da saúde e vive em Setúbal, perdendo mais de três horas diárias em transporte­s públicos para chegar ao hospital de Santa Maria. Dias depois do Marriott abrir portas aos profission­ais de saúde envolvidos no combate ao coronavíru­s, a 7 de abril mudou-se para lá. Além de estar a 850 metros do trabalho, protege a mãe, que é de um grupo de risco (diabética). “Somos vizinhas, coloco as compras no elevador e ela retira-as com cuidado, de luvas”, conta.

Os filhos, de 17 e 21 anos, estão em casa do pai (Sofia está separada).

“Falo com eles por videochama­da”. Mas durante o fim de semana, nas folgas, abre exceção ao confinamen­to de hotel. Regressa a casa para estar com o namorado, também ele profission­al de saúde.

Não levar trabalho para casa é o lema de Ana Margarida. Assim que sai do hospital de Santa Maria desliga mesmo: vai correr nas imediações, em circuitos de 40 minutos; às compras de fruta no supermerca­do perto do hotel Marriott, onde está instalada; ou faz treinos online de GAP (exercícios para glúteos, abdómen e pernas), durante uma hora. Importante é ocupar a cabeça, salienta.

Aos 26 anos, a enfermeira para a área Covid (nas urgências com 17 camas de divisórias) orgulha-se do trabalho na primeira etapa, de rastreio: “Estamos oito horas por dia a receber doentes confirmado­s ou com suspeitas.” Equipada com o fato descartáve­l, sente os movimentos comprometi­dos – o que lhe dificulta as tarefas. “Imagine tirar a tensão [arterial] a um doente e ter uma máscara, um avental, dois pares de luvas, uma bata, uns óculos, uma viseira.” Por isso, quando se desinfeta, sai do serviço e regressa ao hotel sente-se exausta. “Às vezes até adormeço sentada. Não estar preocupada de contaminar alguém é um descanso.”

Foi o receio de pôr em perigo dois familiares com quem partilha um T4 que a levou a isolar-se no hotel, desde 6 de abril. “A minha vida mudou, é muito difícil para mim saber os dias da semana. Estou em Santa Maria há uma semana, vim do Pulido Valente.” Sem filhos e sem namorado, a profission­al de saúde leva o isolamento à letra e há dois meses que não vai à terra natal, em Castelo Branco. “Sinto muita falta da família, mas esta é a minha profissão.”

Músicas e vídeos de motivação

Cada porta do corredor do piso dois do hotel Vila Galé Ópera, em Alcântara, tem um papel afixado com a função do hóspede: há o serviço de urgência Covid (porque o profission­al de saúde hospedado trabalha na área); o intensivos Covid (pelos mesmos motivos); a enó

“SE ME DISSESSEM HÁ DOIS MESES QUE IRIA DEIXAR A MINHA FILHA, DIRIA: ‘JAMAIS’”, DIZ ANA MOREIRA, EM ISOLAMENTO FAMILIAR

loga Covid (trouxe vinho); a ioga Covid (a mais zen); ou a cabeleirei­ra Sissi Covid, entre outros. De cabelos percebe Ana Moreira, de 32 anos, que a par da carreira de enfermagem que exerce no hospital São Francisco Xavier (um dos referencia­dos em Lisboa para o combate à pandemia) corta e pinta o cabelo às colegas ali instaladas. “Tenho tesouras e um secador profission­al que seca num minuto, porque a minha mãe é cabeleirei­ra e tem um salão”, conta.

Esta é a parte divertida, que contrapõe à dolorosa: estar longe da filha (fez 1 ano na passada sexta-feira, dia 17). “Se me dissessem há dois meses que iria deixar a minha filha, respondia: ‘Jamais.’ No entanto, foi uma decisão difícil mas tomada rapidament­e.”

Tem sido penoso para a família, mas como tantas outras mães em situação semelhante, não se arrepende de ter saído de casa. Tenta resguardá-los desde 16 de março, dias antes de conseguir hotel. “Fui para casa de uma amiga e colega. O marido dela foi para a mãe dele com o bebé. O meu foi para casa da minha mãe com a bebé”, recorda.

Ana compensa a distância de casa com a proximidad­e aos colegas. Foram chegando ao hotel gradualmen­te, agora são 14 pelas contas

APÓS O SERVIÇO, ANA MARGARIDA CHEGA EXAUSTA AO HOTEL: “ÀS VEZES ATÉ ADORMEÇO SENTADA”

de Pedro Almeida, da mesma idade de Ana e com a função de gestor Team Covid afixada à porta do quarto. Por precaução saiu de casa, porque vivia com uma amiga asmática. É enfermeiro com 10 anos de experiênci­a, mas também músico, fotógrafo e dinamizado­r de equipas nas horas vagas. “Tentar, cair, levantar, recomeçar. Nunca desistir. Juntos somos mais fortes”, é uma das frases motivacion­ais que repetem. Leem-nas no terraço do piso térreo do hotel, espaço amplo com vista para a ponte 25 de Abril.

Ao fundo da receção impõe-se um piano de cauda que não intimida Pedro. O enfermeiro faz um pequeno recital, em rigor de uma só música que canta com entusiasmo. It’s Gonna Be Okay é um hino à resiliênci­a. Anda a compô-lo com calma. “Estou a trabalhar na letra quase desde que entrei para aqui, a 25 de março.”

As áreas de circulação do Vila Galé Ópera são limitadas para os 20 hóspedes (dos hospitais São Francisco Xavier, Fernando Fonseca, Hospital da Luz, Egas Moniz), à semelhança dos outros hotéis. Só um elevador está em funcioname­nto e o spa foi fechado. Mas há um bónus, enfatiza o diretor Luís Simões: “Disponibil­izámos algum equipament­o do ginásio – bicicleta, halteres, máquina de remos –, numa sala à parte só para eles. Têm ido, são eles que higienizam o espaço.”

Pedro Almeida pratica ali remo, bicicleta e levanta uns pesos. “É importante para libertarmo­s energias, porque o stress é muito”, explica. Garante ainda, até à data de fecho desta edição: “No nosso serviço não temos ninguém do pessoal que tenha sido infetado.”

No início era o medo, agora é o espírito de equipa que prevalece: “Para conseguirm­os ultrapassa­r isto e estarmos bem.” Ana acrescenta: “Somos um bocadinho aqui os impulsiona­dores, mas às vezes apetece-me estar na minha bolha. Sentimos que as pessoas nos procuram muito para isso.” Pedro remata: “Porque veem a energia positiva. Só assim vai resultar, se estivermos aqui nervosos é pior.”

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 ??  ?? O enfermeiro Carlos Nogueira, 51 anos, aproveita as pausas no hospital de Santa Maria para o exercício físico e a escrita. Está no Marriott Lisboa
O enfermeiro Carlos Nogueira, 51 anos, aproveita as pausas no hospital de Santa Maria para o exercício físico e a escrita. Está no Marriott Lisboa
 ??  ?? A assistente Marta Ratinho, 23 anos, trouxe o micro-ondas de casa para aquecer as refeições
A assistente Marta Ratinho, 23 anos, trouxe o micro-ondas de casa para aquecer as refeições
 ??  ?? Sofia Silva, 41 anos, mudou-se para o Marriott a 7 de abril. É assistente em Santa Maria
Sofia Silva, 41 anos, mudou-se para o Marriott a 7 de abril. É assistente em Santa Maria
 ??  ?? Os enfermeiro­s Ana Moreira e Pedro Almeida no lobby do hotel Vila Galé Ópera. Pedro compõe e toca
Os enfermeiro­s Ana Moreira e Pedro Almeida no lobby do hotel Vila Galé Ópera. Pedro compõe e toca
 ??  ?? Ana Margarida, 26 anos, enfermeira no hospital de Santa Maria, está no hotel Marriott desde o dia 6
Ana Margarida, 26 anos, enfermeira no hospital de Santa Maria, está no hotel Marriott desde o dia 6
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