REPORTAGEM: O GRANDE NEGÓCIO DOS CENTROS DE TESTE AUTÁRQUICOS
Quase metade dos exames à Covid-19 é feita por privados. O SNS pode já ter gasto 10 milhões de euros. Mas ninguém sabe qual é a fatura do Governo e das autarquias - a Câmara de Ovar não explica os gastos num hospital de campanha que só recebeu 5 doentes.
Ganham os privados, pagam as câmaras: o hospital de campanha de Ovar só teve cinco doentes e proliferam os pontos de rastreio, um bom negócio para os laboratórios
Sentada numa cadeira de plástico, Andreia Fragoso cerrava os punhos de nervosismo. O primeiro teste à Covid-19 tinha dado positivo e, naquela ampla (e vazia) sala do Centro de Congressos do Estoril, a técnica do laboratório Germano de Sousa preparava-se, de zaragatoa na mão, para fazer a segunda avaliação à jovem de 19 anos. A própria acreditava estar infetada: “Trabalho num lar onde já faleceram algumas pessoas devido a esta doença. Eles tentam esconder isso”, explicou à SÁBADO no centro de testagem aberto pelo município de Cascais. Os sintomas também são suspeitos: é “uma gripe que se confunde com asma” e muito cansaço, descreveu. “Nos primeiros dias senti-me péssima. Até cheguei a ficar quatro dias ‘sem respirar’ e com perda de olfato.”
O primeiro teste foi feito num hospital público, mas o seu médico enviou-a para o privado para o segundo rastreio. “Disse-me que era mais rápido e eficaz aqui”, afirma. Andreia Fragoso é uma das milhares de pessoas que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) tem encaminhado para o privado, numa simbiose público-privada que tornou Portugal um dos 20 países que mais diagnósticos faz por milhão de habitantes. Contudo, o preço pode sair caro: dados facultados pelo Ministério da Saúde à SÁBADO revelam que 48% dos testes Q
Q em Portugal foram feitos por laboratórios privados, quase metade do universo global. Até ao dia 18 de abril, foram feitos 235.878 testes. Ora, se o SNS tem de pagar aos privados 87,95 euros por cada teste a utentes que encaminha, o custo para o erário público ronda já os 10 milhões de euros.
Um dos principais laboratórios privados na linha da frente é o de Germano de Sousa. É responsável por “mais de um terço” de todos os testes privados, revela à SÁBADO o próprio Germano de Sousa, maçon do GOL, ex-bastonário da Ordem dos Médicos e presidente do conselho de administração deste laboratório. Desde dia 9 de março até 15 de abril, fizeram 36.110 testes por todo o País, tendo 60% a 70% sido encaminhados pelo público. “O SNS nunca podia estar preparado para isto. Seria de doidos se o SNS estivesse pronto para uma
“NÃO NOS DEU LUCROS [A TESTAGEM] MAS NÃO FIZEMOS LAY-OFFS”, APONTA O DONO DOS LABORATÓRIOS GERMANO DE SOUSA
pandemia desta magnitude”, explica o médico que já presidiu à Assembleia Municipal de Cascais pelo PS. E garante que não lucrou com o surto: “Deixámos de ter outro tipo de doentes e a nossa atividade principal é agora o combate à pandemia. Não nos deu lucros, mas não fizemos lay-offs. A Covid-19 serviu para pagar ordenados e manter empregos.”
Testar, testar, testar
Não havia qualquer fila à porta do imponente Centro de Congressos do Estoril quando a SÁBADO lá chegou a 17 de abril, pelas 11h. A resposta para a falta de aparato estava no homem solitário à porta, que controla a entrada: “Todos os testes são pré
-marcados e à vez.” O visor do seu tablet mostra uma lista de 171 pessoas agendadas para o dia, algumas encaminhadas pelo SNS, outros do laboratório Germano de Sousa, que gere o centro. “A fila desta manhã era quase de 50 pessoas. Quase chegava ao casino!”, dizia com humor.
Os números não enganam. Desde que abriu a 23 de março, foram feitos naquele espaço 3.865 testes. “Temos capacidade máxima diária de 400 testes e já chegámos a ter um pico de 301. Fazemos em média cerca de 150 a 200 testes diários, de sexta a sábado”, explica à SÁBADO o presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras. Entre a abertura dos centros, o material que encomendaram da China e o aluguer de um avião para a recolha, a autarquia já investiu cerca de 6 milhões de euros na pandemia – e Carreiras prevê chegar aos 10 milhões. Nas contas do autarca, Cascais poderá vir a ter uma perda de receita de dezenas de milhares.
No interior do centro de congressos, o ambiente parece ser retirado de um filme de ficção científica. Trabalhadores vestidos de branco, com os respetivos equipamentos de proteção individual da cabeça aos pés, atentam
“SE NÃO FOSSEM OS TESTES NOS PRIVADOS SERIA UMA CATÁSTROFE EPIDEMIOLÓGICA”, DIZ ROQUE DA CUNHA, DO SINDICATO INDEPENDENTE DOS MÉDICOS
os movimentos de quem chega. As voluntárias da autarquia atendem escudadas por uma barreira de acrílico; a equipa de limpeza borrifava todas as superfícies tocadas pelos utentes para as desinfetar; o segurança geria as entradas, de forma a que nenhum utente se cruzasse com outro.
As quatro salas D do centro de congressos, que outrora serviram para reuniões empresariais e coffee breaks, agora são lugares de rastreio da Covid-19. A sala, que pode receber pelo menos 40 pessoas, tem sido apenas ocupada pela técnica e o utente. O procedimento demora pouco menos de um minuto: coloca-se a zaragatoa pela fossa nasal cerca de 10 centímetros até à rinofaringe, “onde há maior concentração de amostra biológica”, explica Regina Barbosa, do laboratório Germano de Sousa. Para ser bem feito “tem de ir bem lá ao fundo”, o que não é fácil: “Grande parte da anatomia do nariz não é perfeita. Torna-se difícil se uma pessoa tiver desvios nasais, sinusites, rinites, adenoides inflamadas...” É por isso que, para estes rastreios, um teste não basta. “Para se ter a certeza de que é negativo, é aconselhado que dois testes deem negativo num espaço de até 48 horas.”
No mesmo dia, a Germano de Sousa abriu o primeiro centro no Seixal, localizado no Centro de Recursos do Movimento Associativo. Foi uma luta para o presidente do município, Joaquim Santos: “A câmara tinha tudo preparado desde 27 março. O atraso foi da responsabilidade do Ministério da Saúde e da parceria que têm com este laboratório”, explicou.
Testes sem sair do carro
O centro de rastreio recebe exclusivamente casos do SNS. Para já, têm 30 por dia – mas a procura vai levar a autarquia a aumentar para 40 já para a semana. As vagas dos primeiros dias já estavam ocupadas: “Desde dia 26 de março, a unidade da Torre da Marinha, no Seixal, já tinha analisado 633 pessoas”, revela à SÁBADO Alexandre Tomás, diretor executivo do Agrupamento de Centros de Saúde Almada-Seixal.
Foi um trabalho de equipa: a autarquia garantiu o espaço, a segurança, o equipamento informático e a limpeza, enquanto o laboratório fornece os testes e todo o processo de recolha das amostras e análise. “Deveremos ter aqui 7 mil euros mensais. Mas primeiro devemos tratar da saúde das pessoas, depois fazem-se as contas”, diz o líder do município.
De norte a sul, estão montados pontos de rastreio por todo o País: ARS Norte (21) ; ARS Centro (15); ARSLVT (38); ARS Alentejo (10); ARS Algarve (13). Além dos centros fixos, existem operações drive-through, só de carro, como acontece na Póvoa de Varzim, que trabalha com o laboratório privado Synlab. Três dias depois de inaugurar a 13 de abril, já a capacidade tinha esgotado: “No primeiro dia realizámos 50 testes. No segundo, 65. A partir de quarta-feira, realizámos 100 testes por dia. No fim de semana, 60 por dia”, revelou fonte da autarquia. Numa só semana fizeram 535 testes.
“Isto é uma das provas de que o SNS não estava preparado para lidar com esta pandemia. Se não fossem os testes nos privados seria uma catástrofe epidemiológica”, concluiu Jorge Roque da Cunha, líder do Sindicato Independente dos Médicos. W