“OS ABUSOS VÃO CRESCER”
O neuropediatra diz que ninguém pode dizer com honestidade o que a pandemia e o confinamento vão trazer às famílias. É tudo novo e ainda é muito cedo. Mas avança com algumas previsões.
O neuropediatra Nuno Lobo Antunes aborda os maiores problemas do confinamento
Nuno Lobo Antunes falou com a SÁBADO ao telefone, às 9h da manhã de um dia de semana. O médico está em teletrabalho, assim como a restante equipa do seu centro de psicologia, o PIN Progresso Infantil. E isso inclui consultas à distância, por computador. “Há um conjunto de regras. Ser no sítio da casa onde se tem um número reduzido de itens pessoais, as pessoas apresentarem-se vestidas de maneira profissional. O técnico tem de dar as consultas em tempos em que os filhos ou outras obrigações familiares não interfiram.”
Vamos demorar tempo a perceber as consequências desta coisa nova de ficar semanas e meses fechados em casa?
Para já é uma situação completamente nova, nunca foi experimentada por gerações. Outro aspeto é a incerteza que ainda está instalada sobre a duração e o impacto socioeconómico. E depois há um outro aspeto crucial, que é surgir num contexto de desenvolvimento tecnológico novo. Creio que é impossível alguém afirmar com honestidade intelectual quais vão ser as consequências.
Quando diz desenvolvimento tecnológico novo, está a referir-se ao ensino à distância?
Apesar de as pessoas estarem distantes fisicamente podem continuar em contacto social, ainda que virtual. É uma clausura, mas com meios de comunicação. Por outro lado, há uma abundância de comunicação que é uma espada de dois gumes – pela chuva de informação, mas também pela alternância entre a esperança e a
desilusão que se vão seguindo dia após dia.
Perspetiva alguma alteração nas famílias? Ou será algo apenas de curto prazo?
Tenho alguma dúvida que para a generalidade das pessoas tenha algum efeito duradouro. Há dois polos. O número de vítimas de violência doméstica sobe consideravelmente, alguns números apontam até 30%. A ansiedade em relação ao futuro económico, o desemprego e tudo mais, pode ser muito mau. Mesmo o abuso de crianças naturalmente vai crescer.
Que tipos de abusos?
Todos. Uma em cada quatro raparigas nos EUA é vítima de abuso sexual quando chega aos 18 anos e o agressor é com frequência um membro da família. O empobrecimento, a dificuldade de deslocação ou de arranjar alojamento alternativo aumenta a violência doméstica. Há um lado negro da epidemia. Por outro lado, cria oportunidades de as pessoas terem as refeições juntas, dia após dia, fazerem mais jogos em conjunto, os pais ajudarem mais nos trabalhos de casa e na aprendizagem. Portanto, dependendo das famílias, vai criar aproximações, noutros casos mais distorções e mais conflito.
Que comportamentos são sinais de que uma criança está a ficar saturada do isolamento?
Irritabilidade, alterações do sono, alterações do apetite, ataques de pânico, perguntas sistemáticas e repetitivas relacionadas com o bem-estar, angústia em relação ao que pode acontecer com pessoas que são próximas, nomeadamente os avós, e medos de separação, mesmo dentro de casa. Diria que são alguns dos sinais.
Qual é o mais preocupante?
Diria que os ataques de pânico são mais portadores de sofrimento, até porque eventualmente têm outras manifestações somáticas e podem levar os pais a uma situação complicada de decisão: levo ao hospital ou não levo. As pessoas não o querem fazer agora.
“O ensino à distância veio trazer um certo alívio aos alunos com défice de atenção”
O que é que os pais podem fazer?
Primeiro, diria que os próprios pais controlarem a sua ansiedade – os miúdos têm antenas muito sensíveis para aquilo que se passa com os adultos. Outro aspeto é manter as rotinas, sobretudo horas das refeições, banho e atividades tão parecidas quanto possível com o que se fazia antes da epidemia. Depois, haver limites para o tempo em que se vê notícias e em que se tem conversas sobre a epidemia. Na presença das crianças evitar conversas de adultos em relação à estabilidade económica e financeira da família. Depois, informar com verdade de forma que seja adequada à idade da criança. Manter na medida do possível a serenidade dentro de casa. Colocar as crianças na criação daquilo que é um ambiente seguro, fazer crer que também estão a ajudar quando lavam as mãos com cuidado, que tomam precauções e que o facto de estarem em casa e não poderem estar com os amigos é a sua colaboração para o bem-estar de todos.
Que faixa etária pode ser mais suscetível de desenvolver sequelas deste isolamento?
Diria que a adolescência, porque
há um conjunto de coisas que provocam desilusões significativas. Miúdos que fazem anos nesta altura e não podem celebrar com os amigos. As viagens de finalistas. Há um conjunto de perdas. Depois uma certa ansiedade, que é curiosa, que tenho vindo a assistir, que se prende com a criação de grupos – como acontece nos recreios, mas desta vez de forma virtual. Será que me convidam para o grupo de WhatsApp da turma ou não? Ou do grupo mais popular. Esse tipo de exclusões ou integrações é interessante. Outros casos, e estou a pensar na minha filha, que tem 14 anos, que diz que sente que isto é a antecipação de um mundo que os adultos denunciavam com as alterações climáticas, com o aumento da temperatura, em que as pessoas tinham de se proteger. Isso gera muita angústia. Em todas as idades isto provoca medo, receios, ansiedade. Depois há fatores de ordem individual, porque há miúdos mais suscetíveis de sentir stress e ansiedade.
Quando isto tudo passar, podem ficar traumas como medo de ir à rua, ou comportamentos obsessivos como a lavagem das mãos?
Seguramente isso é possível, mas acho que seria mais a exacerbação de traços pré-existentes para os quais esta situação será um gatilho. Mas sim, antecipa-se que em crianças com personalidades obsessivas, possa haver um acréscimo de perturbações dentro da linha obsessivo-compulsiva.
Doenças como o défice de atenção podem ser potenciadas pelo ensino à distância, por os alunos estarem a ter uma aula fora do ambiente de escola?
Nem tanto. As exigências de concentração, de obediência a estruturas rígidas, elementos distratores (conversas com outros colegas), exigências de controlo, tudo isso é bastante menor. Portanto, estão a funcionar num ambiente onde o nível de exigência e de focagem é menor. Com bastante mais descompressão, diria. Portanto não tem sido um problema, pelo contrário, bastantes miúdos têm sentido um certo alívio. Evidentemente que miúdos com hiperatividade, sobretudo mais pequenos, em apartamentos com pouco espaço e muitas pessoas, o caso muda de figura – ao haver mais confinamento há também mais probabilidade de conflito.
As crianças devem continuar a sua medicação nesta altura?
Há miúdos para quem, em período de férias, não fará sentido serem medicados – aqueles que são predominantemente atentos, sem grande agitação motora e sem grande impulsividade. Outros, em que além dos aspetos da atenção, a agitação motora e a impulsividade podem ser fatores altamente perturbadores para o próprio, que muitas vezes se sente pouco capaz de se autocontrolar e de gerar enormes tensões dentro da família.
As crianças medicadas devem ter ensino à distância diferente?
O problema do ensino a distância é muito semelhante ao do ensino em geral: é praticamente impossível individualizar estratégias. Mas em termos teóricos, naturalmente as crianças com défice de atenção deveriam ter sessões mais curtas, com mais espaço de recuperação.
Há relatos de alunos que estão a ter muito melhores resultados no ensino à distância. Isso surpreende-o?
Posso imaginar que possa haver maior suporte da parte dos pais. Talvez alguns se sintam mais atraídos pelo trabalho através das novas tecnologias. Se me perguntar se vamos passar para um ensino à distância, não acho, porque as pessoas sentem falta do contacto físico, pessoal, sobretudo os adolescentes. Sinto que começa a haver uma saudade, um desejo que acabe rapidamente para se poderem abraçar. A escola não é só o ensino, é também convívio, interação social, crescimento interpessoal. O que se passa no recreio é tão importante para a formação dos jovens e das crianças como é o tempo de aula.
Muitas crianças não têm computador. Vamos ter muitas estigmatizadas?
“Há uma ansiedade virtual. Será que me convidam para o grupo de WhatsApp da turma?”
Há algum tempo saiu um artigo no The New York Times [College made them feel equal. The virus exposed how unequal their lives are; A faculdade fê-los sentirem-se iguais. O vírus expôs como as suas vidas são desiguais] que mostrava como as videoconferências revelavam as diferenças de status entre estudantes. Isso é um problema real, faço muitas consultas por Skype e percebo como um enorme número de pessoas prefere meios mais simples como o WhatsApp. Mesmo tendo o Skype instalado, torna-se difícil, não estão habituados. Há uma certa vergonha de não conseguirem dominar as tecnologias, estamos a falar de pessoas de classe média. Se eu pensar nas minhas famílias do interior, do Alentejo, Beiras, nas do Norte, têm imensas dificuldades e isso provoca uma grande desigualdade de oportunidade.
Está em teletrabalho?
Estou, tal como toda a minha equipa. Evidentemente que houve uma quebra significativa no número de consultas. Mas não é igual para todas as faixas etárias. Os técnicos que trabalham com adultos mantiveram a lista intacta. Quem trabalha com adolescentes teve uma quebra mínima. Com crianças muito pequenas, aí torna-se mais difícil, mas mesmo assim há muitos que se mantêm através do apoio de suporte aos pais.
Sente que se está a exigir aos adultos a mesma produtividade em teletrabalho e que isso está a gerar irritação e frustração?
Tenho falado com muitos pais que estão em teletrabalho, é muito difícil, às vezes têm de fazer uma gestão em que cada um dos cônjuges se responsabiliza uma parte do dia pelas crianças e o outro na outra parte. Ainda estamos num certo princípio, há um período de adaptação aos confinamentos. Há quem defenda que só ao fim de três meses é que as pessoas estão verdadeiramente adaptadas a um novo estilo de vida. Isso é muito tempo. Portanto ainda estamos longe de percebe as consequências desta nova forma de viver.