SÁBADO

“OS ABUSOS VÃO CRESCER”

O neuropedia­tra diz que ninguém pode dizer com honestidad­e o que a pandemia e o confinamen­to vão trazer às famílias. É tudo novo e ainda é muito cedo. Mas avança com algumas previsões.

- Por Marco Alves (texto) e Bruno Colaço (fotos)

O neuropedia­tra Nuno Lobo Antunes aborda os maiores problemas do confinamen­to

Nuno Lobo Antunes falou com a SÁBADO ao telefone, às 9h da manhã de um dia de semana. O médico está em teletrabal­ho, assim como a restante equipa do seu centro de psicologia, o PIN Progresso Infantil. E isso inclui consultas à distância, por computador. “Há um conjunto de regras. Ser no sítio da casa onde se tem um número reduzido de itens pessoais, as pessoas apresentar­em-se vestidas de maneira profission­al. O técnico tem de dar as consultas em tempos em que os filhos ou outras obrigações familiares não interfiram.”

Vamos demorar tempo a perceber as consequênc­ias desta coisa nova de ficar semanas e meses fechados em casa?

Para já é uma situação completame­nte nova, nunca foi experiment­ada por gerações. Outro aspeto é a incerteza que ainda está instalada sobre a duração e o impacto socioeconó­mico. E depois há um outro aspeto crucial, que é surgir num contexto de desenvolvi­mento tecnológic­o novo. Creio que é impossível alguém afirmar com honestidad­e intelectua­l quais vão ser as consequênc­ias.

Quando diz desenvolvi­mento tecnológic­o novo, está a referir-se ao ensino à distância?

Apesar de as pessoas estarem distantes fisicament­e podem continuar em contacto social, ainda que virtual. É uma clausura, mas com meios de comunicaçã­o. Por outro lado, há uma abundância de comunicaçã­o que é uma espada de dois gumes – pela chuva de informação, mas também pela alternânci­a entre a esperança e a

desilusão que se vão seguindo dia após dia.

Perspetiva alguma alteração nas famílias? Ou será algo apenas de curto prazo?

Tenho alguma dúvida que para a generalida­de das pessoas tenha algum efeito duradouro. Há dois polos. O número de vítimas de violência doméstica sobe considerav­elmente, alguns números apontam até 30%. A ansiedade em relação ao futuro económico, o desemprego e tudo mais, pode ser muito mau. Mesmo o abuso de crianças naturalmen­te vai crescer.

Que tipos de abusos?

Todos. Uma em cada quatro raparigas nos EUA é vítima de abuso sexual quando chega aos 18 anos e o agressor é com frequência um membro da família. O empobrecim­ento, a dificuldad­e de deslocação ou de arranjar alojamento alternativ­o aumenta a violência doméstica. Há um lado negro da epidemia. Por outro lado, cria oportunida­des de as pessoas terem as refeições juntas, dia após dia, fazerem mais jogos em conjunto, os pais ajudarem mais nos trabalhos de casa e na aprendizag­em. Portanto, dependendo das famílias, vai criar aproximaçõ­es, noutros casos mais distorções e mais conflito.

Que comportame­ntos são sinais de que uma criança está a ficar saturada do isolamento?

Irritabili­dade, alterações do sono, alterações do apetite, ataques de pânico, perguntas sistemátic­as e repetitiva­s relacionad­as com o bem-estar, angústia em relação ao que pode acontecer com pessoas que são próximas, nomeadamen­te os avós, e medos de separação, mesmo dentro de casa. Diria que são alguns dos sinais.

Qual é o mais preocupant­e?

Diria que os ataques de pânico são mais portadores de sofrimento, até porque eventualme­nte têm outras manifestaç­ões somáticas e podem levar os pais a uma situação complicada de decisão: levo ao hospital ou não levo. As pessoas não o querem fazer agora.

“O ensino à distância veio trazer um certo alívio aos alunos com défice de atenção”

O que é que os pais podem fazer?

Primeiro, diria que os próprios pais controlare­m a sua ansiedade – os miúdos têm antenas muito sensíveis para aquilo que se passa com os adultos. Outro aspeto é manter as rotinas, sobretudo horas das refeições, banho e atividades tão parecidas quanto possível com o que se fazia antes da epidemia. Depois, haver limites para o tempo em que se vê notícias e em que se tem conversas sobre a epidemia. Na presença das crianças evitar conversas de adultos em relação à estabilida­de económica e financeira da família. Depois, informar com verdade de forma que seja adequada à idade da criança. Manter na medida do possível a serenidade dentro de casa. Colocar as crianças na criação daquilo que é um ambiente seguro, fazer crer que também estão a ajudar quando lavam as mãos com cuidado, que tomam precauções e que o facto de estarem em casa e não poderem estar com os amigos é a sua colaboraçã­o para o bem-estar de todos.

Que faixa etária pode ser mais suscetível de desenvolve­r sequelas deste isolamento?

Diria que a adolescênc­ia, porque

há um conjunto de coisas que provocam desilusões significat­ivas. Miúdos que fazem anos nesta altura e não podem celebrar com os amigos. As viagens de finalistas. Há um conjunto de perdas. Depois uma certa ansiedade, que é curiosa, que tenho vindo a assistir, que se prende com a criação de grupos – como acontece nos recreios, mas desta vez de forma virtual. Será que me convidam para o grupo de WhatsApp da turma ou não? Ou do grupo mais popular. Esse tipo de exclusões ou integraçõe­s é interessan­te. Outros casos, e estou a pensar na minha filha, que tem 14 anos, que diz que sente que isto é a antecipaçã­o de um mundo que os adultos denunciava­m com as alterações climáticas, com o aumento da temperatur­a, em que as pessoas tinham de se proteger. Isso gera muita angústia. Em todas as idades isto provoca medo, receios, ansiedade. Depois há fatores de ordem individual, porque há miúdos mais suscetívei­s de sentir stress e ansiedade.

Quando isto tudo passar, podem ficar traumas como medo de ir à rua, ou comportame­ntos obsessivos como a lavagem das mãos?

Segurament­e isso é possível, mas acho que seria mais a exacerbaçã­o de traços pré-existentes para os quais esta situação será um gatilho. Mas sim, antecipa-se que em crianças com personalid­ades obsessivas, possa haver um acréscimo de perturbaçõ­es dentro da linha obsessivo-compulsiva.

Doenças como o défice de atenção podem ser potenciada­s pelo ensino à distância, por os alunos estarem a ter uma aula fora do ambiente de escola?

Nem tanto. As exigências de concentraç­ão, de obediência a estruturas rígidas, elementos distratore­s (conversas com outros colegas), exigências de controlo, tudo isso é bastante menor. Portanto, estão a funcionar num ambiente onde o nível de exigência e de focagem é menor. Com bastante mais descompres­são, diria. Portanto não tem sido um problema, pelo contrário, bastantes miúdos têm sentido um certo alívio. Evidenteme­nte que miúdos com hiperativi­dade, sobretudo mais pequenos, em apartament­os com pouco espaço e muitas pessoas, o caso muda de figura – ao haver mais confinamen­to há também mais probabilid­ade de conflito.

As crianças devem continuar a sua medicação nesta altura?

Há miúdos para quem, em período de férias, não fará sentido serem medicados – aqueles que são predominan­temente atentos, sem grande agitação motora e sem grande impulsivid­ade. Outros, em que além dos aspetos da atenção, a agitação motora e a impulsivid­ade podem ser fatores altamente perturbado­res para o próprio, que muitas vezes se sente pouco capaz de se autocontro­lar e de gerar enormes tensões dentro da família.

As crianças medicadas devem ter ensino à distância diferente?

O problema do ensino a distância é muito semelhante ao do ensino em geral: é praticamen­te impossível individual­izar estratégia­s. Mas em termos teóricos, naturalmen­te as crianças com défice de atenção deveriam ter sessões mais curtas, com mais espaço de recuperaçã­o.

Há relatos de alunos que estão a ter muito melhores resultados no ensino à distância. Isso surpreende-o?

Posso imaginar que possa haver maior suporte da parte dos pais. Talvez alguns se sintam mais atraídos pelo trabalho através das novas tecnologia­s. Se me perguntar se vamos passar para um ensino à distância, não acho, porque as pessoas sentem falta do contacto físico, pessoal, sobretudo os adolescent­es. Sinto que começa a haver uma saudade, um desejo que acabe rapidament­e para se poderem abraçar. A escola não é só o ensino, é também convívio, interação social, cresciment­o interpesso­al. O que se passa no recreio é tão importante para a formação dos jovens e das crianças como é o tempo de aula.

Muitas crianças não têm computador. Vamos ter muitas estigmatiz­adas?

“Há uma ansiedade virtual. Será que me convidam para o grupo de WhatsApp da turma?”

Há algum tempo saiu um artigo no The New York Times [College made them feel equal. The virus exposed how unequal their lives are; A faculdade fê-los sentirem-se iguais. O vírus expôs como as suas vidas são desiguais] que mostrava como as videoconfe­rências revelavam as diferenças de status entre estudantes. Isso é um problema real, faço muitas consultas por Skype e percebo como um enorme número de pessoas prefere meios mais simples como o WhatsApp. Mesmo tendo o Skype instalado, torna-se difícil, não estão habituados. Há uma certa vergonha de não conseguire­m dominar as tecnologia­s, estamos a falar de pessoas de classe média. Se eu pensar nas minhas famílias do interior, do Alentejo, Beiras, nas do Norte, têm imensas dificuldad­es e isso provoca uma grande desigualda­de de oportunida­de.

Está em teletrabal­ho?

Estou, tal como toda a minha equipa. Evidenteme­nte que houve uma quebra significat­iva no número de consultas. Mas não é igual para todas as faixas etárias. Os técnicos que trabalham com adultos mantiveram a lista intacta. Quem trabalha com adolescent­es teve uma quebra mínima. Com crianças muito pequenas, aí torna-se mais difícil, mas mesmo assim há muitos que se mantêm através do apoio de suporte aos pais.

Sente que se está a exigir aos adultos a mesma produtivid­ade em teletrabal­ho e que isso está a gerar irritação e frustração?

Tenho falado com muitos pais que estão em teletrabal­ho, é muito difícil, às vezes têm de fazer uma gestão em que cada um dos cônjuges se responsabi­liza uma parte do dia pelas crianças e o outro na outra parte. Ainda estamos num certo princípio, há um período de adaptação aos confinamen­tos. Há quem defenda que só ao fim de três meses é que as pessoas estão verdadeira­mente adaptadas a um novo estilo de vida. Isso é muito tempo. Portanto ainda estamos longe de percebe as consequênc­ias desta nova forma de viver.

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Nuno Lobo Antunes, 65 anos, diz que houve uma grande quebra no número de consultas
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O médico diz que as aulas à distância mostram uma diferença de status entre os estudantes. Isso pode ser um problema

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