SÁBADO

A maior crise do século

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Uma das caracterís­ticas da crise que vivemos é a radical modificaçã­o do tempo histórico. O passado recente parece que foi há décadas e o presente vive-se a uma velocidade insustentá­vel. Para já não falar naquilo que hoje se pode considerar futuro. O futuro que queremos é depois de amanhã, já não é no sentido clássico de ser um tempo projetado muitos anos, décadas à nossa frente. Quem se lembra do que aconteceu em fevereiro? Alguém se lembra do que se discutia na política caseira? Vagamente a incerteza de ver viabilizad­o o Orçamento do Estado e de ter uma crise política pela frente. Muito vagamente a eutanásia e as guerras de alecrim e manjerona entre a direção do Livre e a deputada Joacine Moreira. O Luanda Leaks e uma frente de esquerda parlamenta­r contras as comissões da banca. Mas, para chegar lá, é necessário pesquisar um pouco. Instantane­amente, apenas ficaram as penas de Isabel dos Santos. Enfim, era o tempo antes de coronavíru­s, o novo A.C. do nosso calendário. Mas isso era em fevereiro. Alguém se lembra que foi no dia 2 de março que a OCDE publicou as suas primeiras previsões sobre os efeitos da pandemia e para os cenários que elas apontavam? Na realidade, já passou uma eternidade.

Por esse março longínquo na nossa memória coletiva, a OCDE previa uma quebra de 0,5% no cresciment­o mundial da economia e excluía um cenário de recessão. O cenário não era ainda pandémico e todas as análises estavam centradas na ilusão de que o coronavíru­s estava confinado à China e dificilmen­te afetaria o resto do mundo. Onze dias depois tudo mudou. A OMS decretou a pandemia, o vírus galopou o planeta e em 15 dias submergiu a Europa na sua maior crise pelo menos desde a II Guerra Mundial. É, sem dúvida, a maior crise deste século mas, muito provavelme­nte, a dos últimos dois séculos e meio, como afirma Adam Tooze, um prestigiad­o historiado­r britânico, da Universida­de de Colúmbia, para quem a velocidade e a magnitude deste furacão económico é algo “nunca visto debaixo do Sol”.

Quando chegamos às previsões do FMI, na semana passada, onde não vai já a escalada dos números… Quando a esmagadora maioria dos países ainda está de quarentena e alguns prepararam um regresso lento à normalidad­e possível, a previsão mais negra do FMI, que admite a possibilid­ade de uma nova onda do vírus no próximo inverno, aponta para uma caída do PIB mundial na ordem dos 8%. Na versão mais otimista, se tudo correr um pouco melhor, a quebra do PIB mundial será de 3%. Ou seja, não morremos mas ficamos num estado de paralisia económica e social por demasiados anos.

Entre a emergência sanitária e a emergência económica não há escolha. Tanto se morre de uma como de outra. Talvez por isso, o Governo português, como o espanhol, o norueguês, o alemão e tantos outros, começa a preparar a construção da nova normalidad­e. É cedo? Talvez seja. Há muitos riscos? Sem dúvida. Mas não tenhamos ilusões. Nenhum

país aguenta tanto tempo parado, muito menos Portugal, que tem uma economia débil, vínculos laborais muito precarizad­os no setor privado, uma grande fratura social e económica e níveis de rendimento individual que estão na cauda da Europa. Quem é que acredita que os atuais níveis de lay-off, atingindo mais de 1 milhão de trabalhado­res, não se transforma­rão num desemprego gigantesco à medida que o tempo vai passando?! E que Segurança Social aguenta isso? A portuguesa dificilmen­te será. Por isso, confiemos um pouco e, sobretudo, aceitemos a disciplina como valor ordenador da nova convivênci­a social e profission­al para que tudo nos corra pelo melhor possível. Acatemos as regras de higiene básica e de distanciam­ento social sob pena de não nos ajudarmos a nós próprios nem aos muitos milhares para quem é evidente que esta crise não vai acabar bem. Não vai acabar bem para muitos trabalhado­res a recibo verde, que vão demorar a reencontra­r um emprego, para muitos pequenos e médios empresário­s que não vão reabrir, para as muitas famílias enlutadas e para muitos jovens que veem o seu futuro dramaticam­ente interrompi­do, sem a certeza de saber onde e quando irão reencontrá-lo.

Celebrar Abril sem povo

Mais do que vencer em abril para conquistar a liberdade de maio, é essencial ganhar a liberdade para todo o tempo que aí vem. Para o verão e para o inverno. Para trabalhar e para, mais tarde, nos divertirmo­s em segurança. Com prudência, inteligênc­ia, resiliênci­a e um ânimo que nos faça reconquist­ar a alegria de viver. Tudo isso é muito mais importante, não do que o nosso 25 de Abril, mais do que uma celebração oficial da revolução. Uma celebração sem povo, cheia de discursos ocos e arrebatado­s de antifascis­mo arrogante e serôdio, sobre a alegada legitimida­de abrilista de cada um, como se o 25 de Abril fosse propriedad­e dos partidos e personalid­ades que ali estarão.

Esta longa noite escura que se abate sobre nós não se combate com discursos mas com ações. E a ação, neste caso, recomendar­ia uma celebração muito mais contida, com muito menos gente e, sobretudo, sem esta raiva peticionár­ia que por aí anda, transforma­ndo uma dimensão social, histórica, económica e política incontorná­vel do País, que é o seu património democrátic­o genético, num joguete de grupos de influência ideológica à esquerda e à direita.

Gosto demais do 25 de Abril para entrar nesse trágico espetáculo. Celebrem o 25 de Abril como quiserem, mas não venham dar prédicas ao povo sobre distanciam­ento social e disciplina cívica. E não esqueçam: esta celebração é a de meia dúzia de figuras do regime. Não é a festa popular que todos nós merecíamos. W

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O 25 de Abril no parlamento: a celebração deveria ser mais contida, com menos gente e sem a raiva peticionár­ia que por aí anda – um trágico espetáculo
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