SÁBADO

Gene Deitch (1924-2020)

- RITA BERTRAND

Ilustrador e realizador de episódios de Tom & Jerry e Popeye, trocou a prosperida­de na América pela incerteza em Praga, onde acabou por morrer a 17 de abril, aos 95 anos

Oque eu gostava mesmo era de ser músico. Acho que os músicos são mágicos”, confessou Gene Deitch, chamando a atenção para uma das suas curtas menos conhecidos, com bonecos a tocar jazz, num documentár­io sobre a sua vida e obra, ao lado da mulher, Zdenka Najmanova, sua produtora ao longo das últimas cinco décadas, seu grande amor e um dos motivos para se mudar para Praga, apesar da carreira de sucesso que tinha nos Estados Unidos.

Foi uma decisão difícil. “Sabia que alguém ia sofrer, mas era o que desejava”, sublinhou, referindo-se à ex-mulher e aos três filhos – hoje todos ligados à animação – que deixou na América. “A opção era sofrer eu. Há momentos assim, em que todas as opções têm reversos.”

A verdade é que não se imaginava “a fazer o mesmo dia após dia, para sempre”. Já chegava de produções em série, em quantidade industrial: “Adaptar belos livros ilustrados, cada um com o seu traço, foi o que tornou a minha vida interessan­te. Se tivesse ficado nos Estados Unidos, talvez estivesse na Pixar, a fazer longas de êxito mundial, mas eu nunca quis ser rico e famoso, fui sempre apaixonado por contar histórias de forma económica e artística, com esta equipa incrível, nesta cidade que amo. Fui muito feliz a fazer pequenos filmes para crianças pequenas.”

Foi com um deles – Munro, sobre um miúdo de 4 anos que vai parar ao exército – que ganhou um Óscar para Melhor Curta-Metragem, em 1961. Foi nomeado mais duas vezes e, não fosse a aversão americana ao comunismo, talvez tivesse ganho de novo em 1969 com The Giants: com um boneco vermelho a guerrear com um azul, parábola do conflito Israel-Palestina, foi lido como pró-soviético: “Ninguém entendeu o filme e foi banido sem explicaçõe­s.”

De Chicago a Praga

Nascido Eugene Merrill Deitch a 8 de agosto de 1924, em Chicago, iniciou a carreira a seguir ao liceu, em 1942, como desenhador técnico de aviões, em Los Angeles, passando, após a Segunda

Guerra Mundial, a assistente da direção de arte da Rádio CBS, que conciliou com uma colaboraçã­o como ilustrador da The Record Changer, uma revista de jazz.

O seu traço estilizado chamou a atenção da United Production­s of America (UPA), empresa recente, fundada por dissidente­s da Disney, que o contratou em 1946, quando estava a arrancar.

Não foi logo reconhecid­o e em 1949 mudou-se para Detroit, onde fez os primeiros anúncios para a produtora da General Motors, mas a UPA foi lá buscá-lo em 1951, dando-lhe o lugar de diretor criativo dos seus estúdios nova-iorquinos. Em pouco tempo tornou-se o mais aclamado criador de animações televisiva­s para anúncios, firmando a fama da empresa.

Daí passou para a histórica Terrytoons, a casa do Super Rato, então da CBS e em declínio acelerado, e

BEM-DISPOSTO, NO SEU ÚLTIMO POST NO FACEBOOK ESCREVEU QUE OS ELMOS MEDIEVAIS IAM VOLTAR A SER MODA

revolucion­ou-a, tornando-a uma produtora respeitada de curtas de animação modernas, com personagen­s que rapidament­e se populariza­ram, como Tom Terrific, Sidney the Elephant ou Flebus.

Em 1958 abriu a sua própria empresa e um cliente fez-lhe uma proposta: financiari­a o seu projeto de sonho, o tal Munro que lhe valeu o Óscar, se ele ajudasse a reabilitar os seus estúdios na Checoslová­quia comunista. Deitch aceitou ir por 10 dias e acabou por lá ficar o resto da vida, tendo sido o único americano a viver no território até à transição para a democracia, em 1989. “Todos achavam estranho ter um visto que me permitia entrar e sair quando queria, mas o mistério não era grande. Eu trazia dinheiro e isso interessav­a ao regime”, lembrou, nas suas memórias, For the Love of Prague.

Foi lá que realizou Munro e trabalhou mais de 50 anos, nos estúdios Bratri v Triku, criando curtas de autor, mas também produzindo (abaixo do preço de mercado, claro) para os Estados Unidos – primeiro a série com o boneco trapalhão Nudnik, um original seu, e alguns episódios de Popeye, o Marinheiro, para a Paramount; depois, para a MGM, 13 episódios de Tom & Jerry, que se tornaram de culto por alterarem considerav­elmente o estilo dos originais de Bill Hanna e Joe Barbera, em Hollywood. A razão era óbvia: toda a sua equipa checa desconheci­a por completo o gato e o rato tão famosos do outro lado da cortina de ferro. Morreu a 17 de abril, na sua amada Praga, e não foi de Covid-19, embora esse tenha sido o tema do seu último post no Facebook: bem-disposto, como era seu hábito, escreveu que a grande moda do século XXI ia ser o regresso aos elmos da Idade Média. W

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LUIS GRAÑENA

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