Apetece-me um quadro de Hopper
CERTO DIA (há pouco, por agora), um amigo escreveu-me, a saber de mim, e, lá pelo meio do texto, aludiu aos dias em que para levar a vida fazem falta muitos ombros. Terá sido domingo, se bem me lembro, domingo dito de Páscoa – o dia de, para muitos, acreditar no impossível; e que inveja dessa crença. E julgo que, no mesmo dia, curiosamente, li num jornal que por estes dias de “confinamento” (significante feio, só por si, mesmo sem ir ao significado) têm sido feitas muitas referências aos quadros de Hopper, sobretudo em posts e afins. Fiquei surpreendido, não pelas certeiras palavras sobre ombros (que aliás logo pedi licença para usar, pois tamanha beleza afiada e crua lhes achei), mas pela descoberta digital de Hopper. Não sabia que o pintor andava a calar fundo por aí –, mas também não admira, pois eu, em boa verdade, desconheço muito sobre o mundo digital e não frequento; e, quando oiço posts, ainda me ocorre em primeiro lugar a imagem de um objeto de betão, metal ou madeira que serve para uma (ou mais) de três coisas: sinalizar ou orientar a marcha, erguer fios que servem a comunicação ou bater com a cabeça. Se calhar os posts também servirão, mais coisa menos coisa, para o mesmo; mas voltemos ao Hopper.
Eu sempre gostei muito dele, desde que o descobri. Não tanto como de outros, é certo, mas muito. Não tanto como do irresistível apelo sedutor pelo abismo (a vida fulgurante num instante que foge) de um Caravaggio, ou dos deuses e diabos (doces e amargos) vindos das entranhas de um Bacon, et cetera. Mas gosto muito, e nunca me fez impressão aquela serena, conquanto severa, representação da solidão e da estagnação, a impossibilidade de comunicação, as paisagens desertas, as cenas melancólicas, gente junta mas apartada; e tudo iluminado por uma luz estranha, a luz do silêncio. Hopper é para mim, sobretudo, silêncio. Um silêncio servido por cores suaves, um silêncio que se adivinha rodeado de ruído, um silêncio pontuado por tentativas de pontes, conversas, olhares. Um silêncio íntimo, que grita, que é cheio, redondo e intenso, quase físico, mas que em volta só tem e encontra vazio. Aquele vazio, desolado, do balcão do que dizem ser o mais famoso quadro de Hopper.
Mas Hopper não é triste. Hopper é realista. É o que é, é assim que as coisas são. Não é? E Hopper é, para mim, um consolo, porque encontro nele compreensão. E reconhecimento. E por isso me surpreende a recente descoberta de Hopper. O confinamento não traz, neste particular, nada de novo. Novos demónios são os velhos demónios, os demónios são sempre os mesmos, desde que o mundo é mundo, e nós nele. Pode ser que alguns só deem por isso agora, mas a vida “normal” é apenas uma distração – mas muito importante, sim, vital, sem dúvida – dessa funda verdade do pintor norte-americano. Silêncio. São precisos muitos ombros para levar a vida, mas no fim do dia, e no fim dos dias, é nos ombros de cada um de nós que ela carrega. Não nos iludamos. Hopper não é triste. Hopper é um consolo. Apetece-me, agora como sempre, reconhecer-me naquela compreensão. Só isso já quebra, e muito, o peso ensurdecedor do silêncio. Melhor só talvez a crua constatação de Pessoa/Campos de que não há mais metafísica senão chocolates. “Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!” W