COMO AS MARCAS LIDAM COM A CRIS €
Agradecem aos consumidores e aos trabalhadores, anunciam iniciativas e doações, mas receiam os danos que uma má decisão ou um anúncio mal interpretado possam ter na sua imagem.
Amarca de relógios Swatch diz que “vai ficar tudo bem”. Os trabalhadores do Millennium BCP cantam que “vai correr bem”. As Farmácias de Portugal – que parecem citar os britânicos The Smiths ao dizer que “há luzes que nunca se apagam” – garantem também que “vamos vencer a Covid-19”. Há, depois, quem agradeça. A Unilever – um dos maiores anunciantes do País e distribuidora de marcas como a Olá, a Knorr, a Lipton – diz “obrigado” às “forças de vendas que andam na rua por todos”. A operadora de autoestradas Brisa também diz “obrigado” a “todos os que, pela nossa saúde e segurança, estão no terreno”. O Continente segue o “obrigado” “a quem fica afastado para nos mantermos unidos”, enquanto a Galp agradece a quem fica em casa e a quem trabalha. O que está a acontecer?
Há duas coisas diferentes na publicidade que nos bombardeava até a nossa vida mudar com a pandemia do novo coronavírus. A primeira: há muito menos. A quebra de 28% no tempo de publicidade em televisão no início de abril e as previsões de queda superiores a 40% nas receitas dos media tradicionais são bem visíveis. A segunda mudança não é menor e tem que ver com o tom. Entre justificações, ninguém no meio parece gostar muito do resultado: o publicitário João Wengorovius chama-lhe uma “xaropada”, Diogo Anahory reconhece que “muitas campanhas não se diferenciam umas das outras e isso é a antítese do que deve ser a boa publicidade” e Carlos Coelho admite que se nota “o peso do contexto”.
Com os criativos em teletrabalho e as sessões fotográficas ou de rodagem de filmes congeladas, a maior parte do trabalho recorre a imagens de um banco de imagens ou simplesmente a letras garrafais sobre um fundo plano. Mas há outra razão para a uniformidade: os anunciantes foram apanhados de surpresa por algo inédito e ninguém quis arriscar. “Numa situação dramática como a que estamos a viver, todo o cuidado é pouco: um
deslize ou uma piada mal interpretada pode revelar-se um pesadelo sem fim nas redes sociais ou no domínio das relações públicas”, explica Diogo Anahory, diretor da agência BAR Ogilvy.
Desapareceram o humor e a criatividade, pelo menos por enquanto – e as letras garrafais substituem as pessoas que já não podem aparecer abraçadas ou próximas. No seu lugar, as empresas preferiram mensagens emocionais: “obrigado”, “isto vai passar” e “estamos consigo” (o que abrange o jogo online, incluindo o da Santa Casa) são os três eixos mais comuns. Mas não só. “Este é um momento de pertinência e, mais do que as palavras emocionais muito iguais, o que fala mais alto é o comportamento”, diz o consultor João Wengorovius. São as ações que dão força à mensagem da propaganda.
A publicidade chata – e a má
O Modelo Continente, por exemplo, anunciou um aumento de 20% na remuneração-base dos trabalhadores no ativo. A Brisa não pôs nenhum dos 900 trabalhadores que estão em casa (um terço do total) com horário reduzido ou rotativo em lay-off. O Licor Beirão, que tipicamente comunica com humor, largou as piadas e anunciou que vai fabricar álcool para gel desinfetante, tal como a Super Bock. A cervejeira e a Destilaria Levira produziram 18 mil litros de álcool-gel para as mãos a partir do álcool que sobrou do fabrico da cerveja sem álcool, volume que distribuíram por “cerca de 12 unidades hospitalares desde Coimbra, Aveiro e Porto”, explica Miguel Araújo, diretor de comunicação da Super Bock. O Ministério da Saúde está a compilar os donativos feitos por empresas (várias anunciaram a doação de ventiladores) e pessoas, diz fonte oficial.
Se esta publicidade pode nem aquecer, nem arrefecer – Wengorovius diz que sem algo de útil a comunicar a mensagem perde eficácia, Anahory lembra que é importante “não desaparecer nesta altura” –, já a má publicidade tende a ficar na cabeça das pessoas e arruína rapidamente o efeito da propaganda. A EDP anunciou (em parceria com o
Correio da Manhã e a CMTV) a doação de equipamentos médicos, máscaras e material de proteção em lares e reduções cirúrgicas nas tarifas para profissionais de saúde, mas vai avançar com a distribuição de quase 700 milhões de euros em dividendos aos acionistas, o que “vai cair mal”, nota Wengorovius. O pedido do Pingo Doce – que, como outras grandes cadeias de retalho, atrai por vezes atenção mediática devido às relações contratuais leoninas com os fornecedores – aos senhorios das suas lojas para pagar menos renda é outro exemplo.
Lá fora têm sido vários os exemplos dos limites da publicidade para a defesa de uma marca – mesmo da que tem relevância e utilidade. Depois de ter sido das primeiras marcas de luxo mundiais a anunciarem o fabrico de álcool para gel desinfetante, a LVMH (dono da Louis Vuitton) avançou com a intenção de não pagar renda em várias lojas e é uma das empresas no meio da polémica por causa da distribuição dos lucros de 2019 pelos acionistas – o seu presidente, Bernard Arnault, o homem mais rico de França, anunciou que não receberá salário em abril e maio e cortou um terço na proposta de distribuição de lucros. Não deverá chegar para melhorar a imagem.
NÃO PAGAR RENDA OU DISTRIBUIR LUCROS MATA A BOA VONTADE GANHA COM ANÚNCIOS