A arte de amar à distância
PARTINDO DO PRINCÍPIO de que ainda haverá artistas daqui a um ano (e espectadores com dinheiro para os ver), como será a arte da pós-pandemia? Parem, olhem para trás e imaginem por segundos um mundo suspenso em confinamento retroactivo. O Kiss de Prince transforma-se em “Skype” (ou, na versão do émulo fadista de Herman José, “Instagrama-me Todo”), o Every Breath You Take dos Police converte-se em “Keep Your Fucking Social Distance” e o sensualíssimo Constant Craving de K. D. Lang renomeia-se “Constant Craving (For Chocolat and Chips)”. Em que deserto gelado dos sentidos jazeriam a Renascença, o Romantismo, o roman à clef, a pop, o punk? Os quadros de Rubens encher-se-iam de esqueléticos querubins e amantes por telepatia, O Beijo de Klimt terminaria com um juiz de comarca a ordenar que a osculada se atire do precipício para manter a cerca sanitária, e os dedos humano e Divino de O Dia do Juízo Final de Michelangelo entrariam em estado de emergência depois de devidamente desinfectados com álcool-gel.
Chega-se então à versão distópica de Ter Ou Não Ter de Howard Hawks, com Lauren Bacall, sexy como uma noite húmida de Julho, a suspirar o “Basta assobiares” a um espavorido Bogart, que lhe responde, entredentes: “O que querias que fizesse? Abraçar-te?” Estaremos assim destinados a versões curtas, censuradas ou alternativas do desejo, como descobre o cinquentenário Toto no clímax de Cinema Paraíso de Giuseppe Tornatore, imutados em totós, descendo da febre erótica para a temperatura Covid? Se Burt Lancaster tivesse mantido a distância de dois metros na fila para Deborah Kerr em Até à Eternidade, a espuma das ondas onde pasmosamente se enrolam seria hoje a espuma dos dias.
O esquecimento é como uma troca de papéis entre o passado e o futuro, e a morte da sensualidade de um quadro ou de um livro é equivalente à destruição do Louvre ou ao incêndio na Biblioteca de Alexandria. Se a arte de amanhã tiver menos sexo, desejo e fisicalidade do que a arte de ontem, poderá ser um espelho dos nossos 100 dias de solidão, mas não fará justiça ao que fomos, somos e queremos ser. E talvez um dia todos os filmes desistam, terminando em uníssono como E Tudo o Vento Levou: “Frankly, my dear, I don’t give a damn.” W