Inflação
MAIS DO QUE O TERRITÓRIO demasiado vasto da Nação ou do País, o que nos define fundamentalmente é a casa que habitamos.
Se isto é assim – se o que mais nos define é esse espaço íntimo em que arrastamos as pantufas, tomamos banho, secamos o cabelo, escovamos os dentes e despejamos o caixote do lixo –, como eu creio que é, as últimas semanas fizeram de mim outra pessoa. Não porque tenha mudado de casa, mas porque a relação que mantinha com ela se transformou radicalmente.
A percepção da gaiola em que vivemos não é a mesma antes e depois da quarentena. Quando passamos os dias a olhar para quatro paredes, rodeados de betão, vidro, plástico e madeira, e decidimos enfim fazer arrumações, dominar a desorganização que se foi apoderando da casa, o movimento da Terra não se altera, mas nós começamos a ver as coisas de outra maneira, a criar uma imagem desintegradora de nós próprios. Porque, enfim, toda a mudança no espaço é uma mudança no ser e toda a mudança no ser é uma mudança no espaço.
Entro no quarto. Começo por revistar as mesas-de-cabeceira, uma de cada lado da cama – que livros há ali, que não abro há meses? –, abro as gavetas, começo a investigar o que há nelas, coisas com que as minhas mãos e os meus olhos não contactam há anos, mas que incorporam momentos, instantes, memórias, segredos do passado. Coisas sobrenaturais, que vivem numa dimensão diferente, como envelopes de bancos, facturas, recibos, folhetos de publicidade, cadernos com anotações, molas de roupa, uma radiografia dos pulmões, uma fotografia tipo passe, carteiras de fósforos, pequenas recordações de viagens, uma ficha de casino, um comando à distância avariado, como um animal doméstico falecido. Coisas sem uso e sem vida, que formam enredos estranhos entre si, um mundo às avessas inimigo da ordem e dos sistemas totalizantes.
Empurro e desloco móveis – que tipo de mobília se aproxima da minha caricatura? –, passo ao guarda-fatos e afasto as peças de roupa uma a uma, apalpo os bolsos, à procura de objectos esquecidos ou escondidos. Volto a minha atenção para a secretária de madeira que herdei do meu tio, ex-administrador colonial em Moçambique, e que ainda cheira a função pública.
Trabalho a papelada, classifico revistas, catálogos, recortes de jornais antigos, fotos a cores, mas de há muito tempo, de há muitos anos, imagens de felicidade a contraluz, e dentro de mim começa a ganhar terreno a melancolia, a casmurra melancolia.
Vou até à janela, como quem observa o exterior (quando na verdade olho apenas para o meu interior). Aquilo que vejo, através da minha própria imagem reflectida no vidro duplo, parece-me arrancado de um romance existencialista. Deixo-me absorver pela escuridão do jardim lá fora, imerso em sossego e sombras movediças. Faço perguntas sem resposta, ou sem uma resposta única, ou perguntas essencialmente irónicas, cujas respostas são as próprias perguntas: a quem é que somos mais leais, ao tipo que gostaríamos de ser, ao que temos sido até agora sem o conseguirmos evitar ou àquele que os outros julgam que somos? Qual é a coisa mais honesta que podemos dizer acerca de nós? Queremos verdadeiramente ser o que parecemos ser? Podemos consolar-nos com a mentira e o engano? Estamos confortáveis com o que somos, com o que queremos e com o que fomos? Que mudaríamos se nos fosse dado começar tudo outra vez? Como imaginamos que será o resto da nossa vida?
Percebo, sem perceber nada, que não existe nada mais belo que o costume antigo de cobrir os sofás e os móveis com lençóis quando se ia de férias ou se empreendia uma grande viagem, e nada mais profundo do que aquele absurdo tinteiro de cobre, que era do meu trisavô, abandonado e incompreendido numa caixa que exala a cânfora dos armários da avó Judite.
As casas são histórias. Histórias dentro de histórias que se cruzam, sobrepõem, confundem. Histórias que dizem muitas coisas sobre a nossa capacidade de nos inventarmos constantemente, de ultrapassarmos os nossos limites e desmentirmos o que fomos anteriormente.
Em casa, quando lá fora não há nada, nem coisas, nem ruído, nem vida, apenas um daqueles silêncios nocturnos iguais aos da nossa província, o universo tangível que nos rodeia mostra-nos a impossibilidade de unificarmos todos os nossos interstícios, paradoxos e ambivalências, de encontrarmos uma síntese a partir do emaranhado inextricável de fragmentos e anfractuosidades que constituem a urdidura básica da nossa personalidade, da nossa maneira de ver o mundo e do nosso nível de realidade.
Uma casa é difícil de entender, porque é demasiado imprevisível e imponderável. Dentro de casa, uma pessoa pode enlouquecer, pode arruinar-se, pode ser abandonada, pode acordar a meio da noite e, durante uma fracção de segundos, não saber se está ali ou noutro sítio. Ou se já chegámos àquele momento em que, como nos desenhos animados, caminhamos sobre o abismo, sem terra debaixo dos pés.
Uma casa é muitas coisas ao mesmo tempo e quanto mais se caminha para o seu interior, mais se conhece a sua vastidão. Os objectos que a compõem são como um coro grego que conhece as nossas vidas múltiplas, os seus elementos incompatíveis, o desejo de experimentar a verosimilhança das improbabilidades, de pensar uma coisa, sentir outra e fazer tudo diferente, só pelo prazer de questionar aquilo que parece de uma solidez inquebrantável.
Daqui a dois mil anos, quando os antropólogos estudarem as nossas casas, o que dirão de nós e dos nossos cartões de crédito, da hipoteca da casa, da contracção da economia, dos paraísos fiscais e da capitalização de juros, da carência de capital, dos derivados financeiros e das entidades gestoras, do Euribor, do spread, do stock split, do swap, das vendas associadas facultativas, das sociedades de corretagem, dos sistemas de negociação multilaterais, das unidades de participação de investimento harmonizados?
Abandono a janela, percorro os dois ou três metros que me separavam das estantes, cheias de obras literárias, ensaios e teorias que não consigo explicar exactamente. E lembro-me, não me perguntem porquê, que Kafka morreu sem entender em que consistia a inflação. W