A PRIMEIRA TELECONSULTA
Sem poder explorar as possibilidades lúdicas da quarentena, eu mantinha o ritmo da vida banal sem poder beneficiar das suas sobras extraordinárias vulgarmente contratualizadas como “uma cerveja ao fim do dia”, “jantamos sexta?”, “no sábado almoçamos ao pé do mar” ou “domingo há bola lá em casa”. Sem isso para me colorir os dias, começava a recear não ter sobre que falar. Até que Deus olhou para mim e, numa intenção clara de me sossegar, disse: “Minha filha, eu não te falharia. Aceita este terçolho.”
Então, há dois dias comecei a sentir uma dor ligeira num olho. Depois de confirmar com a Direção-Geral da Saúde que este (ao contrário daquilo em que a minha mãe parecia acreditar) não era um sintoma de Covid-19, pensei, burguesa, “era só o que me faltava”. Para aprender uma lição sobre humildade, comecei a sentir o olho enfermo a inchar enquanto o outro se esbugalhava para ver as notícias do dia.
As notícias não eram boas e a imagem que o espelho me devolvia também não. Com um doutoramento no Google da vida, a minha mãe passava-me a receita: compressas de água quente e uma ida à farmácia se a água não se revelasse benta. Com um mestrado em www, procurei as
AS CONSULTAS ESTAVAM A FUNCIONAR (SURPREENDI-ME, NÃO SEI PORQUÊ). A MÉDICA PEDIA-ME FOTOGRAFIAS POR EMAIL
consultas online que o meu pornográfico seguro de saúde me prometia (não sem antes ter lacrimejado por não poder seguir um conselho amigo, o de usar um anel de ouro no lugar da compressa, tendo-me apercebido, assim, de que não tenho um único anel de ouro, nem para efeitos terapêuticos).
As consultas estavam a funcionar (surpreendi-me, não sei porquê). Telefonema para lá, telefonema para lá e a médica queria levar a telessaúde às últimas consequências. Assim, pedia-me fotografias do hordéolo – ou calázio (do grego khalázios), como preferisse. Com as fotografias em anexo, enviei o email. De resposta, uma voz cândida com olho para isto e para aquilo: “Está tudo bem, como suspeitava. Continue com as compressas de água quente. Posso ajudar em mais alguma coisa?” Mais, Dra.? Não, obrigada. Está feito. W