SÁBADO

Milagres nacionais

- Politólogo, escritor João Pereira Coutinho Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfic­o

ANDA POR AÍ UMA ALEGRIA

macabra com a nossa luta contra a Covid-19. O entusiasmo não se limita ao Presidente da República, para quem o País é simplesmen­te um “milagre”. Espalha-se por políticos, comentador­es, portuguese­s lorpas e a senhora que me vende os legumes. Não admira que o PS esteja em alta nas sondagens: com esta bebedeira colectiva, estranho que o dr. António Costa ainda não tenha sido coroado rei.

Não sei de onde vem esta alegria. Para começar, um País que caminha para os mil mortos (no momento em que escrevo) tem poucas razões para festejar. Sem falar do resto: a onda de destruição económica que aí vem, e que aliás já começou a fazer vítimas com desemprega­dos e lay-offs, devia moderar os festejos. Pelo vistos, não modera.

Mas regresso aos mortos. O País não trilhou o caminho catastrófi­co da Bélgica, de Espanha ou de Itália? Verdade. Uma abençoada verdade. Mas quando olhamos para o número de vítimas por milhão de habitantes, o palco fica mais sombrio. Estamos na primeira e mais lamentável parte da tabela europeia (e até mundial). E, quando estabelece­mos comparaçõe­s com países demográfic­a ou economicam­ente próximos (ou ambos), somos dos piores dos piores.

Em países que rondam os 10 milhões de habitantes, só perdemos para a Bélgica e para a Suécia, ou seja, perdemos para um caso terminal de incompetên­cia e para um país que optou, veremos se acertadame­nte, por não impor nenhum confinamen­to às massas.

Por outro lado, quando nos medimos com países de riqueza per capita semelhante, é inquietant­e saber que, nas mortes por milhão de habitantes, Portugal chega às 70 – mas a Grécia, com 10 milhões de habitantes, tem 10; a República Checa, também com 10 milhões, tem 17; e a Polónia, com o quádruplo da nossa população, não chega aos dois dígitos.

Com este cenário e um futuro que ninguém adivinha quando o País regressar à normalidad­e, o carnaval que vejo por aí não passa de uma piada de mau gosto.

TODO O MUNDO RI

e insulta Jair Bolsonaro. Com um primitivis­mo imaculado, o Presidente do Brasil não hesita em considerar-se acima da ciência e do bom senso para fazer de conta que nada mudou com a crise do coronavíru­s. E quem não concorda com ele, sugerindo maior recolhimen­to, só pode ser comunista ou coisa pior. Se não fossem os governador­es estaduais, que ainda vivem neste planeta, o Brasil estaria condenado. E nós?

Nós temos vários Bolsonaros, que praticamen­te não se distinguem do original. O País está em estado de emergência? Está. Mas eles acham-se acima do povaréu comum para comemorar o 25 de Abril como se a realidade (e a lei) não se lhes aplicasse. A única diferença é que Bolsonaro vê comunistas em todo o lado e os nossos abrileiros vêem fascistas em todo o lado. Mas, em termos cognitivos e neurológic­os, revelam a mesma predisposi­ção para a boçalidade.

Julgava eu que o pior desta pandemia eram os artistas variados que, directamen­te das suas casas, gostam de invadir as nossas para proporcion­ar “entretenim­ento”. Esqueci-me de outro tipo de artistas: os “donos de Abril”, que há 46 anos vivem dessa fantástica mesada, sempre prontos a moralizare­m os rústicos de que só eles sabem o que é a democracia.

Um dia, quando todos eles pertencere­m aos rodapés da história, poderemos olhar para o 25 de Abril, e celebrá-lo, com serenidade e sem oportunism­o ideológico. Até lá, é aguentar estas cruzes da mesma forma que os brasileiro­s aguentam a deles.

AS TELEVISÕES

enchem-se de comentador­es e respectiva­s estantes. De tal forma que, suspeita minha, há uma competição em curso para ver quem tem as melhores lombadas.

Um conselho: desistam. Para começar, a medalha já foi entregue (a José Miguel Júdice). E, para acabar, as estantes são tão primeira semana da quarentena! O que está a dar agora são quadros, de preferênci­a não figurativo­s.

Se a coisa continua, não sei onde vamos parar. Comentador­es com uma orquestra atrás? Bailarinas? Um par de palhaços? É o velho problema da cultura como adorno: sabemos como começa, nunca como acaba. W

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