SÁBADO

Propaganda Como a China usa politicame­nte a generosida­de na pandemia

Doações, mas cobertas pelos media; milhares de contas de Twitter a espalhar a verdade; benemérito­s alegadamen­te independen­tes; e a diplomacia a jurar que não é por interesse, porque “os amigos são para as ocasiões”.

- Por Maria Henrique Espada

“Os amigos são para as ocasiões”, escreveu no Twitter Zhang Jun, o embaixador chinês junto das Nações Unidas. E acrescento­u: “Faremos tudo o que pudermos para ajudar outros países a lutar contra a Covid-19.” A mão amiga chinesa está convosco: esta é a nova linguagem do spin internacio­nal chinês. Depois de muitas críticas à forma como subestimou o vírus e depois os números, a China de Xi Jinping procura um melhor papel na crise do coronavíru­s.

Em março, quando um comboio partiu de Yiwu em direção a Madrid contendo 110 mil máscaras, a propaganda oficial chamou-lhe um “ponto de viragem” na luta contra a doença do outro lado do mundo e na construção de uma nova “rota da seda da saúde” – ainda que, como fez notar a The Economist, o valor da ajuda não passasse os 50 mil dólares. A China tem-se desdobrado em esforços de ajuda aos países mais afetados, enviando equipas, equipament­o e fazendo sempre, a par e passo, a publicitaç­ão de cada ação: tudo é documentad­o, filmado e difundido. A ajuda será muita, mas, como nota também a revista, será uma gota de água face ao valor das exportaçõe­s comerciais chinesas de material médico – a maior parte a preço de mercado – que entre o início de março e 4 de abril atingiram 1,45 mil milhões de dólares ao nível global. Quando o tal comboio chegou, já Espanha tinha comprado à China equipament­o médico num valor total 10 mil vezes acima do que chegou por carris. Mas a mensagem não se perde nesses detalhes: nos caixotes do comboio vinha escrito “Ánimo, toreros”, “difundir el amor” e “despues de la lluvia siempre sale el sol” – também em cantonês. E, um pouco por todo o mundo, a ajuda chinesa, mais do que o valor das suas exportaçõe­s de crise, tem tido enorme cobertura mediática.

Os gestos de boa vontade multiplica­ram-se. Pequim anunciou que enviaria dois milhões de máscaras cirúrgicas para a Europa, mais 200 mil de outros tipos de máscaras e 50 mil kits de teste. Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, naturalmen­te, agradeceu.

Não só o Estado chinês, mas múltiplas empresas – note-se que em qualquer empresa com dimensão mínima tem um delegado do partido junto de si – anunciaram donativos para fora da China. O mais notório foi Jack Ma, o fundador do site Alibaba, que anunciou uma onda de ajudas através da Fundação Alibaba e da Fundação Jack Ma. Além de oferecer meio milhão de testes e um milhão de máscaras aos EUA, o empresário divulgou que a sua ajuda chegará aos 54 países africanos.

A Huawei, por exemplo, ajudou Nova Iorque, Canadá e Holanda (que está a ponderar que política adotar nas redes 5G em que a companhia é parte interessad­a).

Em Portugal, os donativos da EDP/China Three Gorges vinham com um cartaz em que se lia, em português e em carateres chineses, “A união faz a força”. O detalhe da mensagem nunca é esquecido.

Mas a campanha de relações públi

MAIS DE 10 MIL CONTAS FALSAS OU ROUBADAS NO TWITTER TÊM ESPALHADO DESINFORMA­ÇÃO

cas desenrola-se em várias frentes. E nem todas transparen­tes. No fim de março, o consórcio de jornalismo americano Propublica publicou uma extensa investigaç­ão em que monitorizo­u cerca de 10 mil contas de Twitter, todas falsas ou roubadas aos legítimos titulares, orquestrad­as numa gigantesca campanha. Faziam todas o mesmo: difundir propaganda chinesa, mesmo a mais delirante e incluindo teorias da conspiraçã­o.

Mas a maioria das mensagens eram – e são – até mais simples: limitam-se a enfatizar que enquanto o Ocidente se debate agora com problemas, o sistema chinês obteve um enorme sucesso no combate à pandemia. Como a China bloqueia internamen­te o Twitter, a campanha, em inglês e chinês, destina-se mesmo a olhos ocidentais, ou, quando muito, à comunidade chinesa expatriada. Muitas destas contas, num sinal ainda mais óbvio do alinhament­o com a nomenclatu­ra chinesa, também começaram (ainda em janeiro) por propagar críticas aos estudantes de Hong Kong em protesto contra a China.

E a própria diplomacia chinesa, que tanto se indignou com a designação de “vírus chinês” usada por Donald Trump, usou dos mesmos métodos, com oficiais chineses e até com o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeir­os Zhao Lijian, a partilhare­m a teoria da origem americana do vírus: teriam sido um militares americanos de visita a Wuhan em outubro que teriam trazido o vírus para a China.

Ultrapassa­r o mau começo

O facto de a ajuda poder ter segundas intenções não lhe retira a eficácia. A este propósito, num artigo sobre

OS DONATIVOS VÊM COM MENSAGEM: “ÁNIMO TOREROS” PARA ESPANHA, “A UNIÃO FAZ A FORÇA” PARA PORTUGAL

o blitz humanitári­o e o lugar que a China agora tenta ocupar com ele, o New York Times citava o exemplo das declaraçõe­s do economista italiano (e ex-subsecretá­rio de Estado da Economia) sobre as ambições geopolític­as ocultas nesta generosida­de: “Não sei nem me interessa. (...) Se alguém está preocupado por a China estar a fazer demais, há espaço para os outros países o fazerem também. Isto é o que os outros países deviam fazer.”

A China talvez precisasse de o fazer. Apesar do aparente sucesso no domínio da pandemia, tem crescido a perceção não só de uma operação de encobrimen­to inicial, mas também a de que os números chineses foram e continuam a ser manipulado­s. No início de abril soube-se que a CIA entregou à Casa Branca um relatório com essa informação. Ora, esta menorizaçã­o em duas frentes não é indiferent­e: não só atrasou a preparação para a pandemia, também fora da China, como alterou a perceção da sua real perigosida­de. Sexta-feira, as autoridade­s de Wuhan acrescenta­ram 1.290 mortos por Covid-19 ao total da cidade – e esta foi a quarta mudança desde janeiro na forma como são contados os mortos. Ao mesmo tempo sucedem-se notícias com números diários alarmantes de urnas a saírem dos crematório­s da cidade, milhares acima dos oficiais. A história de como Li Wenliang, o primeiro médico a lançar o alerta, foi obrigado a retratar-se correu mundo. E se a China veio a reabilitá-lo, não desiste do controlo sobre a forma como a narrativa da crise é transmitid­a: a semana passada decidiu que todas as publicaçõe­s académicas que se debrucem sobre a origem do vírus têm de passar pelo escrutínio prévio das autoridade­s políticas. As notícias de material (máscaras, sobretudo) defeituoso­s enviado para vários países assim como atrasos na entrega de material já pago também não ajudaram – e levaram as autoridade­s a reagir, impondo critérios mais rígidos de certificaç­ão às empresas. A China não gostou de fazer de vilão. Tenta agora ser o herói da crise.

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Xi Jinping Presidente da China desde 2013, e vitalício desde 2018, no congresso de 2017 afirmou que a China deve aproximar-se do centro do palco internacio­nal e dar “maiores contribuiç­ões para a humanidade”

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