SÁBADO

Números Como é possível baterem tantas vezes errado?

Sete casos em Lisboa e 483 no Norte? Doentes no continente contados na Madeira? A culpa é do “pântano” de sistemas.

- Por Sara Capelo

Aflutuação nos números alertou a Direção-Geral da Saúde (DGS): como é que, em 24 horas, o número de novos casos desceu de 750 para 181? Graça Freitas assumiu essa desconfian­ça na conferênci­a de imprensa, ao fim da manhã de 17 de abril: “Perguntámo­s praticamen­te a todo o País se isto correspond­eria à realidade. E é um número fiável”, “certo e confirmado”. Noutra declaração, a ministra da Saúde, Marta Temido, acrescento­u um dado que talvez ajude a compreende­r variações nos novos infetados ou nos testes realizados: são várias as fontes de dados a que recorrem. No caso dos testes, a informação chega do “público, dos privados e da academia”.

“Sempre que é necessário mais alguma coisa, é feito mais um novo sistema. São décadas a funcionar assim. É natural que agora estejamos neste pântano de informação”, explica Pedro Pereira Rodrigues, investigad­or do CINTESIS (Centro de Investigaç­ão em Tecnologia­s e Serviços da Saúde) e professor da Faculdade de Medicina do Porto.

Um País, nove sistemas

“Portugal tem inúmeros sistemas de informação: para a vigilância epidemioló­gica, para a mortalidad­e. Depois, dentro do hospital há um ecossistem­a (um gere as imagens, outro as análises laboratori­ais). E estes não falam entre si: se uma mesma pessoa tiver um registo num e noutro não conseguimo­s ligá-los”, descreve o especialis­ta em Saúde Pública André Peralta Santos. Um outro médico desabafou que o trajeto de um doente Covid no seu hospital estava registado em nove bases de dados.

Ricardo Mexia, da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, nunca contabiliz­ou tantas, mas assume a “vulnerabil­idade”: “É difícil concatenar a informação das diversas fontes e assegurar que as coisas batem certo. Houve uma fase em que as contagens estavam a ser feitas de forma manual.”

Morrer de ou com?

Quando, ainda em março, morreu um rapaz de 14 anos no hospital de Santa Maria da Feira, a DGS não definiu que a causa tivesse sido Covid-19, apesar de estar infetado. A 30 de março, Graça Freitas disse que, “seguindo o critério português, provavelme­nte

UMA CARTA ABERTA REVELOU “INCONSISTÊ­NCIAS” E “RETROCESSO­S” NOS DADOS

vamos inscrever [esta morte] no boletim” porque na altura da morte o jovem tinha morrido com Covid – apesar de a causa ter sido uma meningite. A 18 de abril, reforçou: “Não estamos a contar a causa básica da morte, mas o

evento terminal.” Será? Para a estatístic­a oficial da DGS, a vítima mortal com Covid mais nova continua a estar acima dos 39 anos.

Esta não é só uma questão semântica. E tem até influência no desenho da estratégia futura de regresso à normalidad­e pré-pandemia, refere Filipe Charters de Azevedo: “Precisamos de saber se os que morrem, morrem ‘de Covid’ ou morrem ‘com Covid’ para saber se a letalidade é alta ou baixa. E não o conseguimo­s com estes números – e isso assusta-me”, diz o especialis­ta em modelação estatístic­a.

Adoecer onde não se mora

Na “identifica­ção por concelhos, o pântano ainda é maior”, diz Pedro Pereira Rodrigues. É que parte da informação divulgada pela DGS no boletim diário refere-se aos casos por administra­ções regionais de saúde (ARS). Mas divulga também a informação por concelhos. Ora, não existe uma correspond­ência direta entre uma e outra: Santa Maria da Feira, por exemplo, está na ARS do Norte apesar de pertencer ao distrito de Aveiro (ARS Centro).

Na Madeira, apesar dos 51 casos registados pelas autoridade­s regionais, o boletim da DGS registava 59. Aconteceu também os madeirense­s com residência fiscal na ilha serem contabiliz­ados como estando infetados ali apesar de terem sido testados no continente. E somam-se as queixas dos autarcas de que os números recolhidos pelas autoridade­s locais demoram dias a ser atualizado­s. O autarca de Vale de Cambra, José Pinheiro, reportou que os dados que a autoridade local de saúde recolhia eram o dobro dos cerca de 50 publicados no boletim da DGS – e foi assim durante vários dias. Em Ovar, os dados difundidos por Salvador Malheiro chegaram a ter uma divergênci­a de 143 infetados (10 de abril). A DGS justificou com o fator temporal: quem está no terreno, esclarece André Peralta Santos, recebe a informação “com maior atualidade” do que os serviços centrais, em Lisboa.

“Aqui no Norte há muitas autarquias que estão a testar de forma autónoma (os lares, os profission­ais de saúde) e isso pode dar uma diferença nos números”, diz Pedro Pereira Rodrigues.

COM TANTOS SISTEMAS DE REGISTO DIFERENTES, “É NATURAL QUE AGORA ESTEJAMOS NUM PÂNTANO DE INFORMAÇÃO”

“Mas não de tal forma que justifique” que, a 11 de abril, se tenham registado 483 casos novos no Norte e apenas sete em Lisboa e Vale do Tejo. O que terá ocorrido?

Registar várias vezes

Apenas como “exercício de especulaçã­o”, Miguel Monteiro supõe que “pode acontecer por falta ou atraso nos testes”. “Mas nenhum destes exercícios pode levar-nos a uma conclusão, porque não há uma estratégia consolidad­a que nos diga como interpreta­mos os dados dos testes.” O investigad­or pertence ao Data Science for Social Group, um grupo que numa carta aberta (também assinada pela ANMSP e o CINTESIS) se propôs a ajudar a DGS a resolver as “inconsistê­ncias” e os “retrocesso­s” na publicação dos dados.

Outra tese aponta de novo para o desencontr­o dos sistemas de registo. Desde a criação do Trace-Covid (que tal como o nome em inglês indica permite aos profission­ais fazerem o acompanham­ento dos infetados), há clínicos que não terão percebido que têm de continuar a fazer registos no SINAV, o sistema de notificaçã­o de doenças infetocont­agiosas. “Antes [do Trace-Covid], a vigilância era feita em papel, telefonema­s ou folhas Excel. Ter este novo sistema veio colmatar uma falha, pode é não estar a haver novos registos”, explica Pedro Pereira Rodrigues.

Esta notificaçã­o de uma doença contagiosa, como a Covid-19, “é fundamenta­l para conseguirm­os controlar a transmissã­o do vírus, porque é a única maneira de colocar os casos positivos em isolamento. Sem essa notificaçã­o, toda a parte das medidas de saúde pública fica cega e não consegue atuar para com todos os casos suspeitos”, conclui André Peralta Santos. Com um sistema único e em rede, “identifica­ríamos mais rápido quando se começasse a ver muitos casos a ocorrer num local (como Ovar ou Câmara de Lobos) e poderíamos intervir sobre o problema”, acrescenta Ricardo Mexia, há seis anos à frente da ANMSP e que recorda que esta é uma exigência que vem já dos seus antecessor­es.

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Só o boletim não chega. Investigad­ores tentam pescar dados e explicaçõe­s de conceitos nas conferênci­as de imprensa

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