Entrevista José Pedro Marques: o historiador diz que Portugal é o reino da maledicência e da inveja
É historiador e romancista – e o facto de ser isso tudo é usado para o criticarem, diz. É especialista em escravatura e uma voz ativa contra pedidos de desculpa e devoluções de património.
Foi professor de História, depois historiador e mais tarde escritor de romances históricos. Aos 70 anos, João Pedro Marques parece estar mais em forma do que nunca. Prepara livros e coletâneas, envolve-se em discussões nos jornais com outros colunistas e não hesita em dar a sua opinião de especialista – uma opinião sem falinhas mansas e pouca falsa modéstia.
A questão sobre a devolução de património vai abrandar ou estamos no início?
Como estas discussões em Portugal são sempre um reflexo do que se passa fora, se lá a questão continuar a colocar-se, e se calhar vai continuar, aqui haverá um eco. Mas é um eco um bocadinho pálido, porque a problemática francesa, por exemplo, é diferente da nossa. Mesmo admitindo esse princípio teórico de restituição, o que é que há aqui em Portugal para hipoteticamente
“As pessoas raramente elogiam os outros. Normalmente criticam e, muitas vezes, pela calada”
restituir? Não estou a ver. A proposta foi apresentada mas foi chumbada no parlamento. Acho que a coisa vai ficar por aqui.
Já utilizou em artigos e entrevistas a expressão “extrema-esquerda” associada a este tema. É para si evidente que é primeiramente uma questão política/partidária?
Cultural talvez. Política também, no sentido em que de facto há uma cultura de esquerda – sobretudo extrema-esquerda – que é milenarista, neste sentido: há uma aspiração a repor e a ressarcir a justiça, a igualdade sobre a Terra, que Cristo virá uma segunda vez à Terra, reporá a justiça, vai reinar em paz durante mil anos (daí o termo milenarista) e vai recompensar os justos e punir os bandidos e os maus, e só depois é que é o fim dos tempos. Isto baseia-se no Apocalipse, um dos textos do Novo Testamento. Há um grande milenarismo no pensamento de extrema-esquerda, esta
ideia de restituição está profundamente ligada a isso, de que finalmente agora vamos pôr justiça nas injustiças do passado.
E isso será possível?
Não é possível. Alguns dos homens de cada época tentaram o melhor possível pôr justiça na injustiça, nas brutalidades daquele seu passado. A séculos de distância é impossível fazer uma coisas dessas, e eventualmente nem sequer é desejável.
“Nos tempos que correm, eu estou bastante mais próximo da direita do que da esquerda”
“Há uma teimosia, um bocadinho tacanha, em relação ao que produzem os historiadores estrangeiros”
Está a fazer uma associação entre uma crença religiosa e um setor do espectro político a que não associamos a religião?
Pois. Vou fazer-lhe uma analogia que pode ser útil. Há muita gente de direita, eventualmente de extrema-direita, que pensa a economia segundo padrões marxistas, sem sequer se aperceber disso e sem sequer ter lido Karl Marx. Mas alguns princípios do marxismo estão a tal ponto disseminados na nossa cultura ocidental atual (a convicção de que a história humana se explica prioritariamente por razões económicas; o conceito de meios de produção; etc.) que todos os usamos mesmo sem nos apercebemos disso. A mesma coisa se passa com o milenarismo. A extrema-esquerda tem uma quantidade de aspetos que são análogos aos aspetos religiosos. Pense-se na frequência com que, na extrema-esquerda, houve dogmas, hereges, perseguições e purgas, e o entendimento do partido como algo que está acima da pessoa e que deve ser objeto de veneração, etc. Daí haver tanta similitude entre os partidos comunistas e certas organizações religiosas.
Tem posicionamento político?
Tenho, claro. Não sou filiado em nenhum partido, voto de acordo com a minha consciência em cada momento. Nos tempos que correm, eu estou bastante mais próximo da direita do que da esquerda.
Pareceu-lhe adequada a reação do deputado do Chega à proposta do Livre, de sugerir a própria devolução da deputa
da ao seu país de origem?
Q
Não, é um disparate, é uma daquelas coisas panfletárias, disparatadas. Aliás, foi censurado universalmente. São daquelas coisas que se dizem em conversa de café, um círculo de amigos à volta de uma bica. Provavelmente também não pensou naquilo a fundo.
Passaram 10 anos desde a estreia como romancista. Seis livros depois, não se terá arrependido. O arrependimento foi não ter começado mais cedo?
Eu tinha uma carreira de historiador que me preenchia. E era investigador. Quando isso se tornou difícil ou impossível de prosseguir, por razões várias, achei que tinha de procurar outra atividade. Saí, pedi reforma antecipada e experimentei escrever um romance histórico. A ideia inicial [do livro Os Dias da Febre] era escrever um artigo científico sobre a epidemia da febre amarela, e pensei “mas ninguém vai ler”, como acontece com os artigos científicos que andam perdidos e encafuados numa revista científica qualquer. Porque é que não faço disto o palco de um romance passado nesta altura? Foi assim.
O que é que os seus colegas historiadores acharam da sua mudança de carreira?
[Gargalhada] Bom, sabe que Portugal é o reino da maledicência e da inveja. Muita gente não se pronunciou. Aliás, em Portugal as pessoas pronunciam-se pouco sobre os outros e raramente elogiam os outros. Normalmente criticam, e muitas vezes pela calada e de forma indireta e de viés. Agora, nos últimos dois a três anos, não sei se está a par disso, estive envolvido num debate público, escrevi dezenas de artigos, sobre várias coisas, mas sobretudo sobre a relação de Portugal com a escravatura. Houve várias críticas, mais nas redes sociais, e muitas delas atacavam-me pelo facto de ser romancista. “Este historiador que é romancista, é mais romancista que historiador”, e tal. Isto é típico da inveja nacional.
Uma pessoa ser um historiador com algum reconhecimento internacional – e nacional – e ser capaz de escrever romances históricos que também tiveram algum reconhecimento, acho que isso é bom. Ser romancista não é uma coisa menorizante. Escrever um romance histórico de bom nível é dificílimo, exige grande domínio da época. Portanto, se me pergunta o que os meus colegas historiadores acham, não me estou a lembrar de nenhum que se tenha pronunciado.
Há pouco falava da inveja e da maledicência portuguesa. É uma pessoa deste tempo, mas também especialista no Portugal de há três séculos. Acha que há uma maneira de ser portuguesa que se mantém?
É muito semelhante, sim. Estava a fazer a pergunta e sabe o que me ocorreu? Eça de Queiroz. Se ler Eça de Queiroz, de há cento e tal anos, encontra lá os portugueses de agora, com a sua mesquinhez, a sua inveja, maledicência, também com o seu sentido de humor, a sua malandrice, está lá isso tudo. Se ler as coisas do século XIX encontra lá o português atual.
Aqui há uns tempos, Onésimo Teotónio de Almeida relatou num livro a ignorância que grassa internacionalmente sobre os Descobrimentos portugueses. E que isso se deve a vários fatores, desde logo os nossos livros são parcamente traduzidos. Passa-se o mesmo com o século XVIII, com a nossa presença em África, com a questão da escravatura?
Menos. Da mesma forma que há poucos historiadores portugueses lidos lá, aqui em Portugal há uma espécie de teimosia, um bocadinho tacanha, ou antiquada talvez, não quero ofender ninguém, há uma ignorância em relação ao que produzem os historiadores estrangeiros. Um colega meu chegou a dizer que eram maus. É um exagero. Há ótimos historiados ingleses e norte-americanos a escrever sobre a presença portuguesa em África, ou sobre os Descobrimentos.
Mas essa resistência é por questões técnicas? Veem por exemplo que na bibliografia não tem suficientes fontes portuguesas, logo, não deve estar bom?
Não, porque alguns desses historiadores conhecem muito bem a documentação portuguesa. Hoje há imensa coisa que está na Internet, mas há uns anos não, e os norte-americanos tinham financiamento suficiente para chegar aí a um arquivo e mandarem microfilmar caixas inteiras de documentos, que levavam para os EUA. Alguns vieram cá estudar a nossa documentação e alguns são ótimos. Joseph C. Milner, que morreu recentemente [1939-2019], falava e lia português, e tem o melhor estudo que existe sobre o tráfico de escravos em Angola [Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730–1830; O Caminho da Morte: Capitalismo Mercante e Comércio de Escravos em Angola]. E nunca é citado, ou é pouco. Há uma renitência em recorrer aos historiados estrangeiros. Portanto as coisas ficam fechadas sempre no mesmo cadinho, sempre no mesmo círculo vicioso. W