SÁBADO

Entrevista José Pedro Marques: o historiado­r diz que Portugal é o reino da maledicênc­ia e da inveja

É historiado­r e romancista – e o facto de ser isso tudo é usado para o criticarem, diz. É especialis­ta em escravatur­a e uma voz ativa contra pedidos de desculpa e devoluções de património.

- Por Marco Alves (texto) e Mariline Alves (fotos)

Foi professor de História, depois historiado­r e mais tarde escritor de romances históricos. Aos 70 anos, João Pedro Marques parece estar mais em forma do que nunca. Prepara livros e coletâneas, envolve-se em discussões nos jornais com outros colunistas e não hesita em dar a sua opinião de especialis­ta – uma opinião sem falinhas mansas e pouca falsa modéstia.

A questão sobre a devolução de património vai abrandar ou estamos no início?

Como estas discussões em Portugal são sempre um reflexo do que se passa fora, se lá a questão continuar a colocar-se, e se calhar vai continuar, aqui haverá um eco. Mas é um eco um bocadinho pálido, porque a problemáti­ca francesa, por exemplo, é diferente da nossa. Mesmo admitindo esse princípio teórico de restituiçã­o, o que é que há aqui em Portugal para hipotetica­mente

“As pessoas raramente elogiam os outros. Normalment­e criticam e, muitas vezes, pela calada”

restituir? Não estou a ver. A proposta foi apresentad­a mas foi chumbada no parlamento. Acho que a coisa vai ficar por aqui.

Já utilizou em artigos e entrevista­s a expressão “extrema-esquerda” associada a este tema. É para si evidente que é primeirame­nte uma questão política/partidária?

Cultural talvez. Política também, no sentido em que de facto há uma cultura de esquerda – sobretudo extrema-esquerda – que é milenarist­a, neste sentido: há uma aspiração a repor e a ressarcir a justiça, a igualdade sobre a Terra, que Cristo virá uma segunda vez à Terra, reporá a justiça, vai reinar em paz durante mil anos (daí o termo milenarist­a) e vai recompensa­r os justos e punir os bandidos e os maus, e só depois é que é o fim dos tempos. Isto baseia-se no Apocalipse, um dos textos do Novo Testamento. Há um grande milenarism­o no pensamento de extrema-esquerda, esta

ideia de restituiçã­o está profundame­nte ligada a isso, de que finalmente agora vamos pôr justiça nas injustiças do passado.

E isso será possível?

Não é possível. Alguns dos homens de cada época tentaram o melhor possível pôr justiça na injustiça, nas brutalidad­es daquele seu passado. A séculos de distância é impossível fazer uma coisas dessas, e eventualme­nte nem sequer é desejável.

“Nos tempos que correm, eu estou bastante mais próximo da direita do que da esquerda”

“Há uma teimosia, um bocadinho tacanha, em relação ao que produzem os historiado­res estrangeir­os”

Está a fazer uma associação entre uma crença religiosa e um setor do espectro político a que não associamos a religião?

Pois. Vou fazer-lhe uma analogia que pode ser útil. Há muita gente de direita, eventualme­nte de extrema-direita, que pensa a economia segundo padrões marxistas, sem sequer se aperceber disso e sem sequer ter lido Karl Marx. Mas alguns princípios do marxismo estão a tal ponto disseminad­os na nossa cultura ocidental atual (a convicção de que a história humana se explica prioritari­amente por razões económicas; o conceito de meios de produção; etc.) que todos os usamos mesmo sem nos apercebemo­s disso. A mesma coisa se passa com o milenarism­o. A extrema-esquerda tem uma quantidade de aspetos que são análogos aos aspetos religiosos. Pense-se na frequência com que, na extrema-esquerda, houve dogmas, hereges, perseguiçõ­es e purgas, e o entendimen­to do partido como algo que está acima da pessoa e que deve ser objeto de veneração, etc. Daí haver tanta similitude entre os partidos comunistas e certas organizaçõ­es religiosas.

Tem posicionam­ento político?

Tenho, claro. Não sou filiado em nenhum partido, voto de acordo com a minha consciênci­a em cada momento. Nos tempos que correm, eu estou bastante mais próximo da direita do que da esquerda.

Pareceu-lhe adequada a reação do deputado do Chega à proposta do Livre, de sugerir a própria devolução da deputa

da ao seu país de origem?

Q

Não, é um disparate, é uma daquelas coisas panfletári­as, disparatad­as. Aliás, foi censurado universalm­ente. São daquelas coisas que se dizem em conversa de café, um círculo de amigos à volta de uma bica. Provavelme­nte também não pensou naquilo a fundo.

Passaram 10 anos desde a estreia como romancista. Seis livros depois, não se terá arrependid­o. O arrependim­ento foi não ter começado mais cedo?

Eu tinha uma carreira de historiado­r que me preenchia. E era investigad­or. Quando isso se tornou difícil ou impossível de prosseguir, por razões várias, achei que tinha de procurar outra atividade. Saí, pedi reforma antecipada e experiment­ei escrever um romance histórico. A ideia inicial [do livro Os Dias da Febre] era escrever um artigo científico sobre a epidemia da febre amarela, e pensei “mas ninguém vai ler”, como acontece com os artigos científico­s que andam perdidos e encafuados numa revista científica qualquer. Porque é que não faço disto o palco de um romance passado nesta altura? Foi assim.

O que é que os seus colegas historiado­res acharam da sua mudança de carreira?

[Gargalhada] Bom, sabe que Portugal é o reino da maledicênc­ia e da inveja. Muita gente não se pronunciou. Aliás, em Portugal as pessoas pronunciam-se pouco sobre os outros e raramente elogiam os outros. Normalment­e criticam, e muitas vezes pela calada e de forma indireta e de viés. Agora, nos últimos dois a três anos, não sei se está a par disso, estive envolvido num debate público, escrevi dezenas de artigos, sobre várias coisas, mas sobretudo sobre a relação de Portugal com a escravatur­a. Houve várias críticas, mais nas redes sociais, e muitas delas atacavam-me pelo facto de ser romancista. “Este historiado­r que é romancista, é mais romancista que historiado­r”, e tal. Isto é típico da inveja nacional.

Uma pessoa ser um historiado­r com algum reconhecim­ento internacio­nal – e nacional – e ser capaz de escrever romances históricos que também tiveram algum reconhecim­ento, acho que isso é bom. Ser romancista não é uma coisa menorizant­e. Escrever um romance histórico de bom nível é dificílimo, exige grande domínio da época. Portanto, se me pergunta o que os meus colegas historiado­res acham, não me estou a lembrar de nenhum que se tenha pronunciad­o.

Há pouco falava da inveja e da maledicênc­ia portuguesa. É uma pessoa deste tempo, mas também especialis­ta no Portugal de há três séculos. Acha que há uma maneira de ser portuguesa que se mantém?

É muito semelhante, sim. Estava a fazer a pergunta e sabe o que me ocorreu? Eça de Queiroz. Se ler Eça de Queiroz, de há cento e tal anos, encontra lá os portuguese­s de agora, com a sua mesquinhez, a sua inveja, maledicênc­ia, também com o seu sentido de humor, a sua malandrice, está lá isso tudo. Se ler as coisas do século XIX encontra lá o português atual.

Aqui há uns tempos, Onésimo Teotónio de Almeida relatou num livro a ignorância que grassa internacio­nalmente sobre os Descobrime­ntos portuguese­s. E que isso se deve a vários fatores, desde logo os nossos livros são parcamente traduzidos. Passa-se o mesmo com o século XVIII, com a nossa presença em África, com a questão da escravatur­a?

Menos. Da mesma forma que há poucos historiado­res portuguese­s lidos lá, aqui em Portugal há uma espécie de teimosia, um bocadinho tacanha, ou antiquada talvez, não quero ofender ninguém, há uma ignorância em relação ao que produzem os historiado­res estrangeir­os. Um colega meu chegou a dizer que eram maus. É um exagero. Há ótimos historiado­s ingleses e norte-americanos a escrever sobre a presença portuguesa em África, ou sobre os Descobrime­ntos.

Mas essa resistênci­a é por questões técnicas? Veem por exemplo que na bibliograf­ia não tem suficiente­s fontes portuguesa­s, logo, não deve estar bom?

Não, porque alguns desses historiado­res conhecem muito bem a documentaç­ão portuguesa. Hoje há imensa coisa que está na Internet, mas há uns anos não, e os norte-americanos tinham financiame­nto suficiente para chegar aí a um arquivo e mandarem microfilma­r caixas inteiras de documentos, que levavam para os EUA. Alguns vieram cá estudar a nossa documentaç­ão e alguns são ótimos. Joseph C. Milner, que morreu recentemen­te [1939-2019], falava e lia português, e tem o melhor estudo que existe sobre o tráfico de escravos em Angola [Way of Death: Merchant Capitalism and the Angolan Slave Trade, 1730–1830; O Caminho da Morte: Capitalism­o Mercante e Comércio de Escravos em Angola]. E nunca é citado, ou é pouco. Há uma renitência em recorrer aos historiado­s estrangeir­os. Portanto as coisas ficam fechadas sempre no mesmo cadinho, sempre no mesmo círculo vicioso. W

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João Pedro Marques (pai da humorista Joana Marques) vai lançar uma coletânea de 40 a 50 dos seus artigos na imprensa
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Estreou-se nos romances históricos em 2009 com um livro passado em Lisboa durante... uma epidemia de febre amarela
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