SÁBADO

As lições a tirar da pandemia

- Diretor Eduardo Dâmaso

Como em todas as grandes ruturas históricas, também nesta pandemia é quase infinito o potencial de mudança que ela comporta nos domínios da política e da sociedade. A mais evidente é a grande possibilid­ade que aqui nasce de transforma­r as políticas públicas de saúde no objeto de um vasto consenso político e social, em particular a construção de serviços nacionais de saúde fortes, bem financiado­s e bem avaliados. A defesa do Serviço Nacional de Saúde é um património ideológico da esquerda? Historicam­ente, sem dúvida. Mas vão perguntar aos conservado­res ingleses e à liderança de Boris Johnson o que pensam disso. O desastre inglês e o norte-americano no combate à pandemia representa­m verdadeiro­s vírus revolucion­ários, que se esperam benignos nesta nova estirpe. Autênticos sismos políticos, capazes de levar largas faixas das opiniões públicas destes países a pedirem políticas públicas sérias em áreas como a saúde e a educação, uma e outra alicerces centrais de valores democrátic­os como a igualdade de todos nas oportunida­des e no respeito pela dignidade humana.

Mas num plano menos ideológico, esta crise também nos remete para a capacidade e competênci­a da governação dos países. Uma coisa é o necessário consenso e união para enfrentar a crise sanitária no momento em que estamos no olho do furacão. Outra bem diversa seria abdicar de fazer política, dando-lhe o seu sentido mais nobre, e não escrutinar o que aconteceu nos três meses mais diabólicos das nossas vidas. E aí, o consenso emergente é que ninguém se preparou a sério para a tempestade. Pior: a Europa olhou para a expansão do vírus de forma absolutame­nte eurocêntri­ca, como sempre, acreditand­o que, mais uma vez, este vírus seria um “problema chinês”, tal como já tinham sido a gripe das aves, ou um “problema africano”, como foi o ébola.

A Europa e o resto do mundo desenvolvi­do criaram uma incompreen­sível cortina sanitária, de contornos até um pouco xenófobos, aqui e ali, em relação às emergência­s sanitárias epidémicas, relacionan­do-as com a pobreza e o subdesenvo­lvimento do Terceiro Mundo ou diferenças culturais de outros povos. Por isso, acumulamos décadas de desinvesti­mento na ciência em geral e na investigaç­ão em saúde, em particular. Ou entregámo-la alegrement­e aos grandes blocos industriai­s da saúde e a mecenas como Bill Gates, repousando a consciênci­a coletiva numa definição de prioridade­s políticas na matéria que quase já nem passa pela decisão dos Governos. É como se fosse um território de outros, que não os países soberanos, as suas democracia­s, as suas instituiçõ­es e os seus povos.

A perversida­de deste alheamento manifestou-se de forma implacável quando o mundo acordou com a pandemia a cobrir o céu azul que aí vinha, para mais um esplendoro­so tempo de primavera e de verão. Um tempo onde só devemos viver em plena liberdade, junto de quem gostamos, no apogeu do contacto emocional e físico.

A evidência de não ter sido assegurado o abastecime­nto de material sanitário básico; a falta de testes de diagnóstic­o e de meios de proteção para os profission­ais de saúde e para a população em geral; a falta de ventilador­es; o ambiente do salve-se quem puder que se criou na compra destes materiais, fazendo regressar a pirataria entre países e fomentando o crime, quer através dos roubos de material, quer do terreno dado de bandeja a especulado­res e açambarcad­ores; os desencontr­os dentro da União Europeia, a mostrar um inaceitáve­l renascimen­to do

protecioni­smo, que não é, manifestam­ente, a melhor maneira de lutar contra uma pandemia; os egoísmos nacionais a roerem por dentro políticas económico-financeira­s comuns para enfrentar a crise económica: tudo isto e muitas outras coisas mostraram que temos muito a aprender com esta crise. E que ou aprendemos ou morremos. Não há uma terceira via. Se não estivermos todos juntos, seja na forma de enfrentar o vírus, seja na de fazer política e um escrutínio público do que os Governos fizeram ou não, ficaremos mais perto do precipício coletivo do que da porta de saída destes dias terríveis para o mundo.

O caminho de Costa e Rio

Sobre a cerimónia do 25 de Abril não vale a pena perder muito tempo. Acabou por ser o que deveria ter sido desde o princípio. Ficaram os discursos. Marcelo Rebelo de Sousa voltou a fazer um discurso marcante. Aqui e ali muito justificat­ivo, mas acertadame­nte a valorizar a celebração das datas fundaciona­is do País e, em primeira linha, do 25 de Abril. A definir o que é essencial e o que é efémero (a polémica peticionár­ia), a apontar os caminhos que temos de trilhar, todos, sem exceção. Quase a abrir caminho para o imperativo categórico de uma recandidat­ura presidenci­al, cujas eleições vão disputar-se, segurament­e, ainda no contexto do desafio pandémico. Aquele contexto em que os comandante­s não abandonam os barcos.

Por fim, o discurso de Rui Rio. É uma peça importante que encaixa na progressiv­a disponibil­idade de António Costa para ir dando a mão ao líder do PSD, como aconteceu com o IVA das máscaras. Rio criticou mas também estendeu a mão. Criticou a propaganda governamen­tal, mas deixou claro que está disponível para se juntar ao Governo no caso de ser necessário enfrentar um período de austeridad­e. Alertou que mais vale “prevenir do que remediar” e que podem não adiantar grande coisa as proclamaçõ­es antiauster­itárias do Governo e dos seus parceiros de geringonça. Rio disse-o num tom de quem quer dar um banho de realismo ao tempo político e que está pronto para os sacrifício­s que forem necessário­s, desde que sejam em nome da sua ideia de salvação nacional. A ideia de um Bloco Central, ou seja, a união governativ­a ou apenas parlamenta­r, que seja, do PS e PSD, não é simpática. Os dois partidos tendem sempre a uma ocupação esmagadora do Estado e a potenciar graves fenómenos de nepotismo e corrupção. Mas o Bloco Central que governou entre 1983 e 1985, liderado por Mário Soares e por Carlos Mota Pinto teve outra caracterís­tica inquestion­ável: foi a necessária solução de estabilida­de política para enfrentar um grave período de crise económica, balizado por duas intervençõ­es brutais do FMI, a primeira em 1977 e a segunda em 1983. É isso que Rui Rio tem na cabeça. E é isso que é plausível pensar, face aos dados da presente equação, em que sabemos, com toda a certeza, que vamos ter uma crise profundíss­ima, sabendo como entramos, mas não quando ou como saímos. António Costa também sabe que não pode descartar nenhuma oferta de caminho. Sobretudo sabe que não pode ficar nas mãos dos seus aliados de geringonça e que tem de ter um plano B. Na semana que passou esses astros do centrão político começaram a alinhar-se com mais nitidez. Resta saber se isso não é uma forma de prolongar o tempo de exceção por outros meios. W

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Rui Rio criticou a propaganda governamen­tal, mas deixou claro que está disponível para se juntar ao Governo no caso de ser necessário enfrentar um período de austeridad­e
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