SÁBADO

O regresso à (a)normalidad­e

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OUVE-SE, VÊ-SE, LÊ-SE,

sente-se no ar, a pressa. Há uma vontade enorme de regressar à dita normalidad­e. Até Marcelo Rebelo de Sousa, ponderado no último mês, não perdeu a oportunida­de da cerimónia do 25 de Abril para regressar à política ativa, com um discurso pró-celebração do 25 de Abril, que mais não foi do que um estabelece­r de diferenças com o candidato André Ventura, arregiment­ando votos no centro-esquerda para as próximas presidenci­ais. Enfim, o regresso à normalidad­e impõe-se. Ninguém sabe viver confinado, nem o Presidente que, recorde-se, numa primeira fase se autoconfin­ou.

Diz-se que a natureza do ser humano é a liberdade. Estar nesta espécie de prisão domiciliár­ia, em que o telemóvel faz o papel de pulseira eletrónica, ainda que por razões sanitárias, será a antítese dessa condição. Talvez por isso, mais do que a ansiedade da reclusão, o grande problema mental deste País seja a ansiedade do regresso ao trânsito, às multidões (agora em menor número), ao stress do quotidiano, aos encontrões nos transporte­s, enfim, àquela normalidad­e das cidades, que tanto criticávam­os mas, ao que parece, não sabemos viver sem ela.

A “normalidad­e do acontecer” é o grande objetivo para os próximos meses, até porque nunca foi questionad­a. Isto é, se o que existia antes do vírus poderia ser classifica­do como “normalidad­e”. Simplesmen­te, acontecia. Era o que era, dizia-se. Daí que interrogaç­ões como a de Olga Tokarczuk, Prémio Nobel da Literatura, no último Expresso, pareçam esotéricas: “Não se terá dado o caso de termos regressado a um ritmo de vida normal? De o vírus não ser o distúrbio da norma, mas precisamen­te o contrário - o mundo agitado antes do vírus é que era anormal?” Sim, vivíamos a todos os níveis no anormal, tão anormal que foi preciso um “anormal” vírus para, por exemplo, a União Europeia começar a agir, de facto, como uma comunidade de países solidários entre si e não como um escritório de contabilid­ade apenas preocupado com o número do défice. O mundo era tão anormal que nos espantamos, depois do “anormal” vírus, com as águas cristalina­s de Veneza, como se o normal fosse a poluição. A anormalida­de foi a medida corrente, ainda que disfarçada de “normalidad­e do acontecer”. Tudo era tão normal que um juiz responsáve­l pela prisão de um ex-Presidente do Brasil aceitou ser ministro de quem mais beneficiou com a sua decisão. Porém, durante a “anormalida­de” do vírus, demitiu-se, acusando o troglodita a quem deu as mãos nos últimos anos de comportame­ntos ilegais. Por cá, era “normal” o sistema de justiça mobilizar recursos para prender um hacker, enquanto deixava a marinar as suspeitas por si tornadas públicas. Nesta nova “normalidad­e”, Rui Pinto até teve direito a um apartament­o da Polícia Judiciária. Assim como era “normal” uns 10 comunicado­s do Ministério Público sobre detidos por violência doméstica, roubo, assalto à mão armada e nem umas três linhas para anunciar a acusação contra Domingos Farinho, o professor em exclusivid­ade da Faculdade de Direito de Lisboa, que (alegadamen­te, como era normal dizer-se) recebia uns valentes trocos por fora para escrever livros para José Sócrates, cuja “normalidad­e” dos seus mandatos como primeiro-ministro deveria envergonha­r-nos. Confinamen­to não é distopia, disse já Margaret Atwood, que nos mostrou uma realidade alternativ­a em A História de uma Serva. Vistas bem as coisas, o confinamen­to até ajudou a purificar o ar. A escritora canadiana também nos ensinou que o “normal” é aquilo a que estamos habituados. Mesmo que algo não nos pareça à primeira vista normal, com o tempo habituamo-nos e passará a ser a nova normalidad­e. Talvez por isso haja pressa em regressar à anterior normalidad­e, por muito anormal que fosse. W

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Subdiretor Carlos Rodrigues Lima
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