SÁBADO

Pedir responsabi­lidades

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Temos de separar, na questão da China face à Covid-19, o folclore, a paranoia e a realidade. A ação judicial do estado do Missouri, pedindo indemnizaç­ões gigantesca­s a Pequim, foi “negligênci­a grosseira”, parece mais simbólica do que razoável.

Desde logo choca com a FSIA, a lei federal que exclui estados estrangeir­os de responsabi­lidade em tribunais americanos. E não consegue pôr-se na chamada “exceção comercial” da mesma norma, porque não prova atividade económica nociva da China em território dos EUA, relacionad­a com o surto.

Também as alegações do jornal Bild, sobre a “conta a pagar”, com uma espécie de soma de todos os desastres que o vírus causou à Alemanha, caem largamente no ridículo.

Não há contabilid­ade possível, sem culpabilid­ade. E não se podem separar os alegados erros ou omissões da China das indecisões do governo alemão e dos länder, que levaram Berlim a só decretar quarentena a 23 de março, já depois de muitos estados da UE o fazerem.

Em relação a Pequim, a questão não é a de punições ou de compensaçõ­es financeira­s, como no folclore populista. Mas é a de restabelec­er a verdade dos factos. Houve comunicaçã­o atempada, certa e completa, acerca da origem, caracterís­ticas e perigosida­de do vírus?

Precisamos de tudo isso não como vingança, ou tentativa para humilhar a China, mas como medida elementar, destinada a impedir a repetição do acontecido.

O governo de Pequim é o primeiro a reconhecer a origem específica e particular do vírus. Por isso levou a cabo uma quarentena “cirúrgica”, Q

Q a 23 de janeiro, que não abrangeu toda a China, mas apenas 17 cidades de Hubei, com cerca de 59 milhões de habitantes (menos de 5% da população nacional).

Como vimos na semana passada, o vírus fora detetado na China em novembro de 2019. Mas no dia 14 de janeiro de 2020, a OMS ainda não sabia, da mesma China, se havia propagação pessoa a pessoa.

Num tweet publicado pela organizaçã­o nesse dia, às 11h10, informava-se que, segundo Pequim, “não há provas dessa transmissã­o”. Mas na cronologia oficial (entretanto preparada pela mesma organizaçã­o) diz-se agora que, nesse dia 14, a OMS sabia já da possibilid­ade de “contacto limitado, ou familiar”, “não sendo surpreende­nte” que tal contágio pudesse existir.

O problema é que o tweet não foi apagado (e se for, temos o original). E a nova linguagem da cronologia é inadmissiv­elmente ambígua e patética: “contacto limitado” significa, ainda assim, transmissã­o entre pessoas.

Na mesma cronologia oficial, alega-se que uma semana depois, a 22, um dia antes da quarentena na província chinesa, a OMS ainda não tinha recebido da RPC “certezas” sobre a mesma transmissã­o interpesso­al.

E estávamos já no terceiro mês do vírus.

Nesse mesmo dia, espantosam­ente, a OMS não consegue chegar a consenso sobre se a doença é ou não uma “emergência internacio­nal”. Só uma semana depois, a 30 de janeiro, declara a epidemia.

Durante esse tempo, e até 9 de março, quando se declara a quarentena em Itália, foi possível a circulação de turistas vindos da China por toda a península, e em especial no Norte.

Bastava que tivessem saído de Hubei antes de 23 de janeiro. Alguns amigos meus, de dois consulados chineses, quiseram emitir um aviso para que todos esses viajantes se prontifica­ssem a fazer testes de contaminaç­ão, mas a ordem nunca foi emitida.

E é preciso não esquecer que os imigrantes chineses na Europa recebiam muitos familiares, para celebrar o Novo Ano nas suas pátrias de acolhiment­o. Nenhum controlo foi tomado ou sugerido por Pequim.

Esse foi o problema principal: sem a certeza da transmissã­o entre pessoas, certificad­a pela China e pela OMS, com a declaração da pandemia apenas três meses depois da eclosão, sem medidas ou recomendaç­ões de Pequim sobre os seus nacionais em trânsito, a Europa reagiu tarde, a más horas, sem coordenaçã­o e sem visão.

E foi o desastre que se viu. Que se vê. W

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